São Paulo, quinta, 24 de setembro de 1998

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CONCERTO - CRÍTICA
Concertgebouw soa plena a cada compasso


ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Todo mundo deveria ter a chance de escutar uma orquestra como essa pelo menos uma vez. Não se trata só de virtuosismo, embora a Royal Concertgebouw Orchestra tenha virtuosismo de sobra.
É mais simples e mais alto do que isso: é a presença da música, soando plena a cada compasso e ressoando dobrada em cada ouvinte que não for de pedra. Seu concerto de terça, no Municipal, foi um ponto alto da temporada -um concerto de verdade, que é sempre um evento na vida de qualquer um.
A glória dessa orquestra são os violinos, violas e violoncelos, e o maestro Riccardo Chailly teve a grande idéia de abrir o programa regendo as "Metamorfoses", de Richard Strauss (1864-1949), escrita para 23 solistas de corda. Composta em 1945, tendo nas costas o peso da guerra (e da inépcia pessoal de Strauss, no contexto), essa é uma das maiores e mais comoventes peças de música de câmara do nosso século, que é o século da música de câmara.
"O que importa não é o início da melodia, mas sua continuação, seu desenvolvimento até atingir um contorno perfeito", escreveu o compositor. O princípio é levado às últimas consequências nesses 30 minutos de música, uma transformação constante de temas até a resolução, na "Marcha Fúnebre" da "Sinfonia nš 3", de Beethoven.
Riccardo Chailly regeu Strauss não apenas com a confiança transcendental que essa música exige, mas com uma consciência estratégica das relações entre as "Metamorfoses" e a "Quinta" de Mahler, na segunda parte do programa.
A começar,literalmente, pela "Marcha Fúnebre" da "Quinta". Não é impossível que, em retrospecto, a maior peça sinfônica do século tenha sido escrita por Gustav Mahler (1860-1911), em 1903. Tudo acontece nessa sinfonia, que tocada assim tem o impacto de uma vida - mais intensa, mais cheia de sentido- sobreposta por uma hora à nossa e preservada na memória para sempre.
O som da Orquestra do Concertgebouw é o som da Orquestra de Concertgebouw: direto, brilhante, de uma precisão incrível nos ataques, calorosos, franco e acima de tudo controlado por uma inteligência musical que não é só do regente, mas da própria orquestra.
Perfeição não existe: o primeiro trompete tropeçou no início e no final do primeiro movimento; a primeira trompa não foi capaz de manter a afinação o tempo todo etc. Mas que importância tem isso? Quem foi ao teatro ouviu música como nunca, e os deslizes foram irrelevantes face à grandeza do que se tocou.
Richard Strauss dizia de si mesmo, em seus últimos anos, que talvez não fosse um compositor de primeira classe, mas que era um compositor de segunda classe de primeira classe. Já Mahler era um compositor de primeira classe mesmo, mas escrevendo, onde necessário, música de segunda classe -uma metamorfose que só recentemente começamos a escutar.
Regida por Chailly, a Orquestra do Concertgebouw, absolutamente de primeira classe, faz música como só as maiores orquestras podem fazer. A metamorfose, no caso, também é de quem ouve; e a memória do concerto serve quase de mandamento: manter esse nível de escuta pelo resto da vida.



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