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CONCERTO - CRÍTICA
Concertgebouw soa plena a cada compasso
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
Todo mundo deveria ter a chance
de escutar uma orquestra como essa pelo menos uma vez. Não se trata só de virtuosismo, embora a Royal Concertgebouw Orchestra tenha virtuosismo de sobra.
É mais simples e mais alto do que
isso: é a presença da música, soando plena a cada compasso e ressoando dobrada em cada ouvinte
que não for de pedra. Seu concerto
de terça, no Municipal, foi um
ponto alto da temporada -um
concerto de verdade, que é sempre
um evento na vida de qualquer um.
A glória dessa orquestra são os
violinos, violas e violoncelos, e o
maestro Riccardo Chailly teve a
grande idéia de abrir o programa
regendo as "Metamorfoses", de Richard Strauss (1864-1949), escrita
para 23 solistas de corda. Composta em 1945, tendo nas costas o peso
da guerra (e da inépcia pessoal de
Strauss, no contexto), essa é uma
das maiores e mais comoventes
peças de música de câmara do nosso século, que é o século da música
de câmara.
"O que importa não é o início da
melodia, mas sua continuação, seu
desenvolvimento até atingir um
contorno perfeito", escreveu o
compositor. O princípio é levado
às últimas consequências nesses 30
minutos de música, uma transformação constante de temas até a resolução, na "Marcha Fúnebre" da
"Sinfonia nš 3", de Beethoven.
Riccardo Chailly regeu Strauss
não apenas com a confiança transcendental que essa música exige,
mas com uma consciência estratégica das relações entre as "Metamorfoses" e a "Quinta" de Mahler,
na segunda parte do programa.
A começar,literalmente, pela
"Marcha Fúnebre" da "Quinta".
Não é impossível que, em retrospecto, a maior peça sinfônica do
século tenha sido escrita por Gustav Mahler (1860-1911), em 1903.
Tudo acontece nessa sinfonia, que
tocada assim tem o impacto de
uma vida - mais intensa, mais
cheia de sentido- sobreposta por
uma hora à nossa e preservada na
memória para sempre.
O som da Orquestra do Concertgebouw é o som da Orquestra de
Concertgebouw: direto, brilhante,
de uma precisão incrível nos ataques, calorosos, franco e acima de
tudo controlado por uma inteligência musical que não é só do regente, mas da própria orquestra.
Perfeição não existe: o primeiro
trompete tropeçou no início e no
final do primeiro movimento; a
primeira trompa não foi capaz de
manter a afinação o tempo todo
etc. Mas que importância tem isso?
Quem foi ao teatro ouviu música
como nunca, e os deslizes foram irrelevantes face à grandeza do que
se tocou.
Richard Strauss dizia de si mesmo, em seus últimos anos, que talvez não fosse um compositor de
primeira classe, mas que era um
compositor de segunda classe de
primeira classe. Já Mahler era um
compositor de primeira classe
mesmo, mas escrevendo, onde necessário, música de segunda classe
-uma metamorfose que só recentemente começamos a escutar.
Regida por Chailly, a Orquestra
do Concertgebouw, absolutamente de primeira classe, faz música
como só as maiores orquestras podem fazer. A metamorfose, no caso, também é de quem ouve; e a
memória do concerto serve quase
de mandamento: manter esse nível
de escuta pelo resto da vida.
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