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São Paulo, sexta-feira, 24 de outubro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Calígula, a gula

Calígula, a gula dança ula-ula na praia e seus gritos chegam até nós: ai dos vencidos! A praxe é citar a frase em latim, "vae victis!", mas Calígula não tem nada com isso e o remédio é gritar mesmo, em bom vernáculo, audível pelas testemunhas dos tempos e da memória dos deuses e dos homens sem memória.
-Quem for patriota me siga!
A frase está errada, a frase certa é brasileiro, quem for brasileiro me siga, ou siga-me quem for brasileiro, a ordem das parcelas não altera o produto desde que o produto tenha sido enlatado em vácuo esterilizado e tenha pagado as taxas alfandegárias previstas na portaria 53.697, de 13 de dezembro de 1968. Mas não é esse o problema. O problema é: como esterilizar o vácuo? Eis a questão.
Mas aceitemos de coração contrito e espírito humilhado o vácuo estéril e vazio. Enchamos o vácuo com cadáveres dos malaios e dos búlgaros e coloquemos por cima o epitáfio dos coptas: "Se pagará ao portador desta, a quantia de mil cruzeiros. Valor recebido". Assinado pelo Eugênio Gudin, numa velha nota com Pedro Álvares Cabral no medalhão.
Não sei o que a nota está fazendo no bolso do defunto. Há muito que os defuntos não precisam de notas, desde que Abraão fecundou Sara e com ela gerou a descendência dos fortes. Mas Sara era estéril e como esterilizar o estéril? Então disse o Senhor: "Vai, recolhe os teus trapos e some pela estrada de Generasé até chegar a Cascadura. De lá toma o parador das 18 horas e vai ver o filho do último retirante da seca de 1915 que morreu na incubadora da Aliança para o Progresso, comprada com os recursos advindos da Lei Rouanet. E não explores os fracos. Deixa que eu mesmo os explorarei até o consumir dos Tempos".
E, tendo dito, disse.
Mas contra a voz do Senhor levanta-se o filho bastardo de Sigmund Freud de seu túmulo regado de anticoncepcionantes e assim bradou para as cidades vazias e os campos desertos:
-Deixo para vós outros essa mensagem de fé e esperança nos altos destinos de todos os povos que bebem o vinho da fornicação. Ergo meu cadáver intumescido de vermes para cobrar da Humanidade a última gota de leite da mãe enferma que assassinará o filho porque não tinha o que dar de comer. Aponto com meu dedo enegrecido pelos infernos o rosto do general que derrubar o próximo governo da América Latina.
E mais não disse porque soou a trombeta, acionada pelo Paulo Coelho, do alto do Santuário de São Tiago de Compostela e retransmitida diretamente pela CNN em versão dos estúdios do Herbert Richers. E, soando a trombeta, abriu-se o céu em sete camadas de nuvens e de uma delas saiu uma voz gemente e formidanda:
-Lula! Lula!
E o povo tremia, ouvindo essas coisas.
Pasmada, a multidão corria, temendo que os Sete Flagelos caíssem sobre os filhos e as filhas do povo. Mas, de repente, abriu-se o sétimo selo e de lá saiu o cavalo branco de Napoleão, o próprio!, gritando: "Ma vie et mon cognac!".
E a turba tremia, achando que eram chegados os Tempos.
Mais não tremeu porque a Ursa Polar rodou e rolou em seu eixo imaginário e caiu no centro do estádio do Maracanã na hora em que Sua Senhoria, o Árbitro, arbitrava a partilha dos Sem-Terra que haviam invadido os territórios ocupados pelas tropas do general Motors.
-Hosana! Hosana! Hosana três vezes ao Filho do Homem que marcar o terceiro gol.
O terceiro gol não foi marcado, jamais o seria e só quem sabia disso éramos eu e a mulher nua que fugiu de Braz de Pina porque o marido a espancava e foi para Gomorra onde o novo marido a espancava mais e melhor.
-Tomemos a canoa, disse ela, iremos para o País dos Fortes.
Mas a canoa virou no fundo do mar por minha causa, pois eu não sabia remar. E as ondas subiram e afogaram a baleia em cujo ventre morava o profeta Jonas e mais tarde mataria o capitão Ahab, mas antes cuspindo fora sua perna de pau que fazia toc toc toc no convés de madeira do "Pequod".
E nisso apareceu o Duque de Caxias com sua espada cintilante e pacificou as regiões marinhas de onde se ouviam os sinos da catedral submersa de Debussy e os gritos dos afogados que cantavam "Imagine", tendo ao fundo a Orquestra Tabajara do Severino Araújo.
E, então, aconteceu: quando as trevas caíram sobre o abismo, eis que das cinzas dos mortos surgiu o nefando vulto do traidor Joaquim Silvério dos Reis segurando a cabeça de Tiradentes, que tinha os olhos esbugalhados, com vergonha de tudo o que se passava na praça que até hoje tem o seu nome.
Porém já cinco sóis eram passados que dali nós partíramos cortando os mares nunca dantes navegados, prosperamente os ventos assoprando quando uma noite, estando descuidados, na cortadora proa vigiando, uma nuvem que os ares escurece sobre nossas cabeças aparece.
Não era Adamastor, o monstro marinho que acabou virando navio da marinha mercante portuguesa. Era, aí sim, Calígula e sua gula, sua vasta, sua insaciável, sua obscena gula.

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