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CARLOS HEITOR CONY
Calígula, a gula
Calígula, a gula dança
ula-ula na praia e seus gritos
chegam até nós: ai dos vencidos!
A praxe é citar a frase em latim,
"vae victis!", mas Calígula não
tem nada com isso e o remédio é
gritar mesmo, em bom vernáculo,
audível pelas testemunhas dos
tempos e da memória dos deuses
e dos homens sem memória.
-Quem for patriota me siga!
A frase está errada, a frase certa
é brasileiro, quem for brasileiro
me siga, ou siga-me quem for brasileiro, a ordem das parcelas não
altera o produto desde que o produto tenha sido enlatado em vácuo esterilizado e tenha pagado
as taxas alfandegárias previstas
na portaria 53.697, de 13 de dezembro de 1968. Mas não é esse o
problema. O problema é: como esterilizar o vácuo? Eis a questão.
Mas aceitemos de coração contrito e espírito humilhado o vácuo
estéril e vazio. Enchamos o vácuo
com cadáveres dos malaios e dos
búlgaros e coloquemos por cima o
epitáfio dos coptas: "Se pagará ao
portador desta, a quantia de mil
cruzeiros. Valor recebido". Assinado pelo Eugênio Gudin, numa
velha nota com Pedro Álvares Cabral no medalhão.
Não sei o que a nota está fazendo no bolso do defunto. Há muito
que os defuntos não precisam de
notas, desde que Abraão fecundou Sara e com ela gerou a descendência dos fortes. Mas Sara
era estéril e como esterilizar o estéril? Então disse o Senhor: "Vai,
recolhe os teus trapos e some pela
estrada de Generasé até chegar a
Cascadura. De lá toma o parador
das 18 horas e vai ver o filho do último retirante da seca de 1915 que
morreu na incubadora da Aliança para o Progresso, comprada
com os recursos advindos da Lei
Rouanet. E não explores os fracos.
Deixa que eu mesmo os explorarei até o consumir dos Tempos".
E, tendo dito, disse.
Mas contra a voz do Senhor levanta-se o filho bastardo de Sigmund Freud de seu túmulo regado de anticoncepcionantes e assim bradou para as cidades vazias e os campos desertos:
-Deixo para vós outros essa
mensagem de fé e esperança nos
altos destinos de todos os povos
que bebem o vinho da fornicação.
Ergo meu cadáver intumescido de
vermes para cobrar da Humanidade a última gota de leite da
mãe enferma que assassinará o filho porque não tinha o que dar de
comer. Aponto com meu dedo
enegrecido pelos infernos o rosto
do general que derrubar o próximo governo da América Latina.
E mais não disse porque soou a
trombeta, acionada pelo Paulo
Coelho, do alto do Santuário de
São Tiago de Compostela e retransmitida diretamente pela
CNN em versão dos estúdios do
Herbert Richers. E, soando a
trombeta, abriu-se o céu em sete
camadas de nuvens e de uma delas saiu uma voz gemente e formidanda:
-Lula! Lula!
E o povo tremia, ouvindo essas
coisas.
Pasmada, a multidão corria, temendo que os Sete Flagelos caíssem sobre os filhos e as filhas do
povo. Mas, de repente, abriu-se o
sétimo selo e de lá saiu o cavalo
branco de Napoleão, o próprio!,
gritando: "Ma vie et mon cognac!".
E a turba tremia, achando que
eram chegados os Tempos.
Mais não tremeu porque a Ursa
Polar rodou e rolou em seu eixo
imaginário e caiu no centro do estádio do Maracanã na hora em
que Sua Senhoria, o Árbitro, arbitrava a partilha dos Sem-Terra
que haviam invadido os territórios ocupados pelas tropas do general Motors.
-Hosana! Hosana! Hosana
três vezes ao Filho do Homem que
marcar o terceiro gol.
O terceiro gol não foi marcado,
jamais o seria e só quem sabia
disso éramos eu e a mulher nua
que fugiu de Braz de Pina porque
o marido a espancava e foi para
Gomorra onde o novo marido a
espancava mais e melhor.
-Tomemos a canoa, disse ela,
iremos para o País dos Fortes.
Mas a canoa virou no fundo do
mar por minha causa, pois eu não
sabia remar. E as ondas subiram
e afogaram a baleia em cujo ventre morava o profeta Jonas e mais
tarde mataria o capitão Ahab,
mas antes cuspindo fora sua perna de pau que fazia toc toc toc no
convés de madeira do "Pequod".
E nisso apareceu o Duque de
Caxias com sua espada cintilante
e pacificou as regiões marinhas de
onde se ouviam os sinos da catedral submersa de Debussy e os
gritos dos afogados que cantavam
"Imagine", tendo ao fundo a Orquestra Tabajara do Severino
Araújo.
E, então, aconteceu: quando as
trevas caíram sobre o abismo, eis
que das cinzas dos mortos surgiu
o nefando vulto do traidor Joaquim Silvério dos Reis segurando
a cabeça de Tiradentes, que tinha
os olhos esbugalhados, com vergonha de tudo o que se passava
na praça que até hoje tem o seu
nome.
Porém já cinco sóis eram passados que dali nós partíramos cortando os mares nunca dantes navegados, prosperamente os ventos
assoprando quando uma noite,
estando descuidados, na cortadora proa vigiando, uma nuvem
que os ares escurece sobre nossas
cabeças aparece.
Não era Adamastor, o monstro
marinho que acabou virando navio da marinha mercante portuguesa. Era, aí sim, Calígula e sua
gula, sua vasta, sua insaciável,
sua obscena gula.
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