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Crítica/erudito
Freire e Tiempo encaram Chopin com brilhantismo
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Não seria fácil escolher o
ponto alto dessa gloriosa semana do piano
em São Paulo. Mas também
não seria fácil competir com o
terceiro movimento de "Gaspard de la Nuit" tocado por Sergio Tiempo anteontem, no Cultura Artística.
Aos 35 anos, com carreira
consolidada, incluindo turnês
com sua grande incentivadora
Martha Argerich, gravações
com o violoncelista Mischa
Maisky e concertos com orquestras do porte da Sinfônica
de Chicago, o venezuelano é
um dos nomes mais brilhantes
da nova geração. Tem uma facilidade digital no limite do insultoso, não só na obra-prima de
Ravel (1875-1937), mas também na "Valsa Mefisto" nº 1 de
Liszt (1811-86).
Que ele tivesse escolhido
uma sonata de Haydn (1732-1809) para começar a noite já
dava a medida dos seus interesses, que não guardam nada de
exibicionismo, mesmo com
tanto para exibir. Tocou um
Haydn cheio de vida: um dramaturgo do iluminismo, entregue sem qualquer traço de melancolia ao teatro das formas.
Depois se lançou nos espaços
infinitos da "Sonata" nº 3 de
Chopin (1810-49).
Que Nelson Freire tivesse tocado a mesma sonata de Chopin uma semana antes, no Municipal, permitia uma comparação rara, iluminando o estilo
de um e outro. Freire faz um
Chopin mozartiano, em que
nada jamais parece exagerado,
nem diminuído. É o compositor dos compositores, um abstracionista, tecendo arabescos
da paixão. Já Tiempo amplifica
e subtrai as coisas do início ao
fim dessa música em que tudo
varia o tempo todo. Rendas levíssimas cedem lugar a exasperações, recitativos, comentários, linhas cantadas como
árias sem palavras.
Tudo é interessante o tempo
todo, mesmo quando se pode
discordar disso ou daquilo. Um
romancista jamais poderia batizar seu pianista de Tiempo,
porque soaria inverossímil (como um arquiteto chamado
"Spazio", ou um médico, "Salute"). Mas Tiempo parece mesmo um grande artista do tempo: seu grande salto se dá na
quarta dimensão, para além do
infinito espaço dos dedos.
O concerto de Nelson Freire
inaugurava uma nova série de
concertos, "Piano Solo". Cada
programa traz um artista consagrado -até o fim do ano virão
Diana Kacso, Cristina Ortiz e o
diretor da série, Eduardo Monteiro- precedido por um pianista jovem. No dia 15, foi a vez
de Leonardo Hilsdorf, aluno de
Monteiro na USP e vencedor de
alguns concursos nacionais.
Apresentou duas "Peças Líricas" de Grieg (1843-1907) e a
"Rapsódia Espanhola" de Liszt,
sem acusar a pressão da circunstância. Tem fibra e tem
presença; articula e respira a
música.
Não seria fácil competir com
o terceiro movimento de "Gaspard de la Nuit" tocado por Sergio Tiempo; mas Nelson Freire
tocando o último movimento
da "Sonata op.110" de Beethoven (1770-1827) -a música
apoiada em si para sair, afinal,
de si- e o "Finale" da "Sonata"
de Chopin -a música caindo
em si para chegar ao mais fundo de si- foram outros eventos
sem competição.
São momentos supremos da
música, outros dois grandes
saltos, levando a gente de carona até o próximo milagre.
SERGIO TIEMPO E NELSON FREIRE
Avaliação: ótimo
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