São Paulo, quarta-feira, 24 de outubro de 2007

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Crítica/erudito

Freire e Tiempo encaram Chopin com brilhantismo

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Não seria fácil escolher o ponto alto dessa gloriosa semana do piano em São Paulo. Mas também não seria fácil competir com o terceiro movimento de "Gaspard de la Nuit" tocado por Sergio Tiempo anteontem, no Cultura Artística.
Aos 35 anos, com carreira consolidada, incluindo turnês com sua grande incentivadora Martha Argerich, gravações com o violoncelista Mischa Maisky e concertos com orquestras do porte da Sinfônica de Chicago, o venezuelano é um dos nomes mais brilhantes da nova geração. Tem uma facilidade digital no limite do insultoso, não só na obra-prima de Ravel (1875-1937), mas também na "Valsa Mefisto" nº 1 de Liszt (1811-86).
Que ele tivesse escolhido uma sonata de Haydn (1732-1809) para começar a noite já dava a medida dos seus interesses, que não guardam nada de exibicionismo, mesmo com tanto para exibir. Tocou um Haydn cheio de vida: um dramaturgo do iluminismo, entregue sem qualquer traço de melancolia ao teatro das formas.
Depois se lançou nos espaços infinitos da "Sonata" nº 3 de Chopin (1810-49).
Que Nelson Freire tivesse tocado a mesma sonata de Chopin uma semana antes, no Municipal, permitia uma comparação rara, iluminando o estilo de um e outro. Freire faz um Chopin mozartiano, em que nada jamais parece exagerado, nem diminuído. É o compositor dos compositores, um abstracionista, tecendo arabescos da paixão. Já Tiempo amplifica e subtrai as coisas do início ao fim dessa música em que tudo varia o tempo todo. Rendas levíssimas cedem lugar a exasperações, recitativos, comentários, linhas cantadas como árias sem palavras.
Tudo é interessante o tempo todo, mesmo quando se pode discordar disso ou daquilo. Um romancista jamais poderia batizar seu pianista de Tiempo, porque soaria inverossímil (como um arquiteto chamado "Spazio", ou um médico, "Salute"). Mas Tiempo parece mesmo um grande artista do tempo: seu grande salto se dá na quarta dimensão, para além do infinito espaço dos dedos.
O concerto de Nelson Freire inaugurava uma nova série de concertos, "Piano Solo". Cada programa traz um artista consagrado -até o fim do ano virão Diana Kacso, Cristina Ortiz e o diretor da série, Eduardo Monteiro- precedido por um pianista jovem. No dia 15, foi a vez de Leonardo Hilsdorf, aluno de Monteiro na USP e vencedor de alguns concursos nacionais.
Apresentou duas "Peças Líricas" de Grieg (1843-1907) e a "Rapsódia Espanhola" de Liszt, sem acusar a pressão da circunstância. Tem fibra e tem presença; articula e respira a música.
Não seria fácil competir com o terceiro movimento de "Gaspard de la Nuit" tocado por Sergio Tiempo; mas Nelson Freire tocando o último movimento da "Sonata op.110" de Beethoven (1770-1827) -a música apoiada em si para sair, afinal, de si- e o "Finale" da "Sonata" de Chopin -a música caindo em si para chegar ao mais fundo de si- foram outros eventos sem competição.
São momentos supremos da música, outros dois grandes saltos, levando a gente de carona até o próximo milagre.


SERGIO TIEMPO E NELSON FREIRE
Avaliação:
ótimo


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