São Paulo, sábado, 24 de outubro de 2009

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LIVROS

Crítica/"Sobre os Escritores", "Festa sob as Bombas - Os Anos Ingleses" e "Sobre a Morte"

Trilogia traz Canetti autobiográfico

Saem no Brasil livro de críticas, obra sobre a guerra e reflexões sobre a morte do Prêmio Nobel de Literatura de 1981

MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Elias Canetti é um virtuose da autobiografia. Sua trilogia na qual narra sua vida, da infância até a partida para o exílio na Inglaterra em 1939, é um ponto alto da literatura de língua alemã.
Somos agora presenteados com um precioso pacote de novas traduções: um livro de ensaios de crítica literária, a continuação de sua autobiografia e um volume de textos curtos sobre a morte. Os ensaios de crítica de Canetti são vigorosos. Suas opiniões soam como um verdadeiro "veredicto", que fazem lembrar o famoso conto de Kafka do mesmo nome.
O texto "Hebel e Kafka" é uma pérola preciosa do volume. Canetti se identifica com Kafka que, como ele, mantinha uma relação tensa com o seu judaísmo. É como se Kafka tivesse seguido à risca o que Canetti considera a força do escritor: "Existe uma tensão legítima no escritor: a proximidade do presente e a força com que ele o repele".
O poeta "não sofre realmente, apenas se lembra". Frase, aliás, que pode ter sido inspirada por Pessoa, outro autor que Canetti também conhecia bem. "No fundo, nunca nada me importou mais do que me dividir como Pessoa em alguns poucos personagens, aos quais me apego coerentemente."
Em "Festa sob as Bombas -Os Anos Ingleses" lemos uma concretização de uma das máximas de Canetti: "O que um poeta não vê não aconteceu". É como se os leitores fossem transportados para Londres durante a guerra, incluindo aí os bombardeios nazistas.
Canetti fala muito pouco de si: ele faz uma "heterobiografia" e é no modo como ele julga (condena, se apaixona e descreve) os outros que ficamos íntimos dele. Este livro é passível de várias abordagens, uma delas é a da análise do trabalho da memória: o autor escreveu este texto em três etapas, entre 1990 e 1994, ano de sua morte, aos 89 anos.
A obra é fragmentária e tem repetições, já que não pôde ser revista pelo autor. Mas isso é um dos charmes do livro e lhe dá um caráter de "diário atrasado". Canetti narra detalhadamente encontros com as mais interessantes personalidades: de um varredor, que ele reverenciava como a um personagem bíblico, a Eliot, poeta que ele odiou com toda enorme força de sua alma. Sua vida aparece a ele, meio século depois dos fatos narrados, como uma festa sem fim. Seu trabalho nesses encontros era o de martelar a camada gélida do esnobismo britânico com sua verve vienense.
Essas festas aconteciam algumas vezes sob bombardeios. "Em pleno dia, olhava-se para o céu e seguiam-se os rastros dos aviões como um evento esportivo. Era tão excitante." As pessoas se esqueciam que estavam assistindo a homens de verdade perdendo suas vidas diante deles. Tudo parecia um evento sublime. Da guerra e do Holocausto praticamente não se fala.
Mas a explicação para esse fato encontra-se justamente no volume "Sobre a Morte", que apresenta centenas de fragmentos nos quais apresenta sua verdadeira tanatofobia: ele abominou tudo que lembrasse a morte. Com Hobbes, autor que venerava, ele aprendera que "o perigo por excelência é a morte" ("Massa e Poder").
Essa sacralização da vida só pode ser compreendida se levarmos em conta seu trauma primordial: a morte de seu pai, com 31 anos, que ele assistiu aos sete anos. Sua mãe o repreendeu, então, porque naquela situação ousou brincar. Apenas em 1978 ele anotou: "Na nova vida, que começou aos 75 anos, ele esqueceu a morte do pai". Sua obra pode ser lida como a tentativa de inscrição desta morte.
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA é professor de teoria literária na Unicamp


SOBRE OS ESCRITORES

Autor: Elias Canetti
Tradução: Kristina Michahelles
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 32 (112 págs.)
Avaliação: ótimo

FESTA SOB AS BOMBAS - OS ANOS INGLESES

Autor: Elias Canetti
Tradução: Markus Lasch
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 46 (232 págs.)
Avaliação: ótimo

SOBRE A MORTE

Autor: Elias Canetti
Tradução: Rita Rios
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 35 (160 págs.)
Avaliação: ótimo




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