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LIVROS
Crítica/"Sobre os Escritores", "Festa sob as Bombas - Os Anos Ingleses" e "Sobre a Morte"
Trilogia traz Canetti autobiográfico
Saem no Brasil livro de críticas, obra sobre a guerra e reflexões sobre a morte do Prêmio Nobel de Literatura de 1981
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Elias Canetti é um virtuose da autobiografia.
Sua trilogia na qual narra sua vida, da infância até a
partida para o exílio na Inglaterra em 1939, é um ponto alto
da literatura de língua alemã.
Somos agora presenteados
com um precioso pacote de novas traduções: um livro de ensaios de crítica literária, a continuação de sua autobiografia e
um volume de textos curtos sobre a morte.
Os ensaios de crítica de Canetti são vigorosos. Suas opiniões soam como um verdadeiro "veredicto", que fazem lembrar o famoso conto de Kafka do mesmo nome.
O texto "Hebel e Kafka" é
uma pérola preciosa do volume. Canetti se identifica com
Kafka que, como ele, mantinha
uma relação tensa com o seu judaísmo. É como se Kafka tivesse seguido à risca o que Canetti
considera a força do escritor:
"Existe uma tensão legítima no
escritor: a proximidade do presente e a força com que ele o repele".
O poeta "não sofre realmente, apenas se lembra". Frase,
aliás, que pode ter sido inspirada por Pessoa, outro autor que
Canetti também conhecia bem.
"No fundo, nunca nada me importou mais do que me dividir
como Pessoa em alguns poucos
personagens, aos quais me apego coerentemente."
Em "Festa sob as Bombas
-Os Anos Ingleses" lemos uma
concretização de uma das máximas de Canetti: "O que um
poeta não vê não aconteceu". É
como se os leitores fossem
transportados para Londres
durante a guerra, incluindo aí
os bombardeios nazistas.
Canetti fala muito pouco de
si: ele faz uma "heterobiografia" e é no modo como ele julga
(condena, se apaixona e descreve) os outros que ficamos íntimos dele. Este livro é passível
de várias abordagens, uma delas é a da análise do trabalho da
memória: o autor escreveu este
texto em três etapas, entre
1990 e 1994, ano de sua morte,
aos 89 anos.
A obra é fragmentária e tem
repetições, já que não pôde ser
revista pelo autor. Mas isso é
um dos charmes do livro e lhe
dá um caráter de "diário atrasado". Canetti narra detalhadamente encontros com as mais
interessantes personalidades:
de um varredor, que ele reverenciava como a um personagem bíblico, a Eliot, poeta que
ele odiou com toda enorme força de sua alma. Sua vida aparece a ele, meio século depois dos
fatos narrados, como uma festa
sem fim. Seu trabalho nesses
encontros era o de martelar a
camada gélida do esnobismo
britânico com sua verve vienense.
Essas festas aconteciam algumas vezes sob bombardeios.
"Em pleno dia, olhava-se para o
céu e seguiam-se os rastros dos
aviões como um evento esportivo. Era tão excitante."
As pessoas se esqueciam que
estavam assistindo a homens
de verdade perdendo suas vidas
diante deles. Tudo parecia um
evento sublime. Da guerra e do
Holocausto praticamente não
se fala.
Mas a explicação para esse
fato encontra-se justamente no
volume "Sobre a Morte", que
apresenta centenas de fragmentos nos quais apresenta
sua verdadeira tanatofobia: ele
abominou tudo que lembrasse
a morte. Com Hobbes, autor
que venerava, ele aprendera
que "o perigo por excelência é a
morte" ("Massa e Poder").
Essa sacralização da vida só
pode ser compreendida se levarmos em conta seu trauma
primordial: a morte de seu pai,
com 31 anos, que ele assistiu
aos sete anos. Sua mãe o repreendeu, então, porque naquela situação ousou brincar.
Apenas em 1978 ele anotou:
"Na nova vida, que começou
aos 75 anos, ele esqueceu a
morte do pai". Sua obra pode
ser lida como a tentativa de inscrição desta morte.
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA é professor de
teoria literária na Unicamp
SOBRE OS ESCRITORES
Autor: Elias Canetti
Tradução: Kristina Michahelles
Editora: José Olympio
Quanto: R$ 32 (112 págs.)
Avaliação: ótimo
FESTA SOB AS BOMBAS -
OS ANOS INGLESES
Autor: Elias Canetti
Tradução: Markus Lasch
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 46 (232 págs.)
Avaliação: ótimo
SOBRE A MORTE
Autor: Elias Canetti
Tradução: Rita Rios
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 35 (160 págs.)
Avaliação: ótimo
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