São Paulo, sábado, 24 de novembro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

Dança das cadeiras

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Jakob Lenz (1751-1792) ficou mais conhecido como personagem-título da célebre novela de Georg Büchner do que pelas peças que escreveu. Gilles Deleuze o cita como exemplo de uma "máquina esquizofrênica" contra o modelo da neurose familiar, na abertura de "O Anti-Édipo".
Lenz morreu louco, na rua, em Moscou, depois de algumas tentativas de suicídio. Sua biografia ganhou um interesse que sua obra curiosamente perdeu no decorrer dos anos, a despeito de sua extrema modernidade e de ter sido admirada por grandes nomes do século 20, como Bertolt Brecht, que dele adaptou a peça didática "O Preceptor".
Lenz foi um dos autores mais radicais do chamado "Sturm und Drang" (Tempestade e Ímpeto), movimento literário precursor do romantismo alemão, que combatia as convenções do classicismo francês e do racionalismo iluminista em nome de uma redescoberta de instintos, paixões e forças da natureza.
"O Novo Menoza" (1774), peça recém-encenada pelo Teatro da Cornucópia, em Lisboa, com lançamento simultâneo da tradução de José Miranda Justo pela editora Cotovia, ilustra bem a potência dessa obra que afirma, com um humor e um sarcasmo espantosos, a incompatibilidade entre o homem e as restrições da moral e dos costumes.
A peça, inspirada no texto de um teólogo dinamarquês que alcançou grande sucesso em meados do século 18, conta a história de um ingênuo príncipe oriental em visita à Europa. O príncipe quer conhecer os costumes e a civilização ocidental. É recebido por uma família provinciana alemã e logo se apaixona pela filha do Capitão, Guilhermina, com quem se casa.
Como nas comédias de Shakespeare, que Lenz tanto admirava (traduziu "Trabalho de Amor Perdido"), há um jogo frenético de troca de papéis e identidades, com uma indefectível cena de baile de máscaras ao final. A certa altura, o próprio príncipe e seus anfitriões ocidentais descobrem que ele na verdade não é príncipe nem oriental, mas o filho que o casal havia perdido quando pequeno.
A consternação é geral. Afinal, o príncipe se casou com a própria irmã. No entanto, Lenz não leva a sério o mito do filho pródigo. Ao contrário, aproveita o tema do incesto para escarnecer das convenções e apresentar uma visão implacável da condição humana.
Convocada a analisar o caso, e levando em conta a infelicidade da noiva apaixonada, a Faculdade de Teologia local decide que o incesto é válido. Assim também, o pai, indignado com a fuga do filho atormentado pela revelação, exige que o rapaz volte e assuma de uma vez por todas o casamento com a própria irmã. O incesto passa a ser defendido pela lei. Tudo é relativo.
Como se não bastasse, em oposição à ingenuidade e à retidão moral do falso príncipe, um conde alemão tenta se livrar da condessa que o ama, mandando matá-la, ao mesmo tempo em que segue com o intuito de possuir, nem que seja à força, a jovem Guilhermina recém-casada, por quem sente um desejo desesperado.
A condessa, entretanto, sobrevive. E antes de sair atrás do homem que a mandou matar e que ainda assim ela continua a amar (aqui as pessoas amam e matam como quem troca de roupa), descobre que foi trocada na infância, e que é na realidade a verdadeira irmã do falso príncipe.
A dança das cadeiras prossegue, fazendo com que a cada ato os personagens ocupem novos e diferentes lugares nas relações amorosas ou de parentesco. O ritmo frenético dos diálogos e das ações aparentemente despropositadas e inverossímeis revela não só a volubilidade dos sentimentos de cada um no meio desse caos, mas sobretudo o abismo entre sentimento e desejo. Não é que não sintam o que dizem, mas o que sentem não é o que desejam.
Lenz faz do teatro um lugar de redefinição do mundo. Tudo parece inverossímil justamente porque, ao contrário das aparências do mundo social, essa "máquina esquizofrênica" apresenta sem meias medidas a cisão entre a razão, os sentimentos e os desejos. Os personagens são marionetes nas mãos do desejo. Ao final, resta apenas uma constatação diante da tragicomédia a que estão sujeitos: que o desejo pode até coincidir, mas nada tem a ver com o amor.


O Novo Menoza ou História do Príncipe Tandi de Cumba
    
Autor: Jakob Lenz
Tradução: José Miranda Justo
Editora: Cotovia (Lisboa)
Quanto: 2.200,00 escudos (102 págs.)
Onde encomendar: www.lusabooks.com



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