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RESENHA DA SEMANA
Dança das cadeiras
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Jakob Lenz (1751-1792) ficou mais conhecido como
personagem-título da célebre
novela de Georg Büchner do que
pelas peças que escreveu. Gilles
Deleuze o cita como exemplo de
uma "máquina esquizofrênica"
contra o modelo da neurose familiar, na abertura de "O Anti-Édipo".
Lenz morreu louco, na rua, em
Moscou, depois de algumas tentativas de suicídio. Sua biografia
ganhou um interesse que sua
obra curiosamente perdeu no
decorrer dos anos, a despeito de
sua extrema modernidade e de
ter sido admirada por grandes
nomes do século 20, como Bertolt Brecht, que dele adaptou a
peça didática "O Preceptor".
Lenz foi um dos autores mais
radicais do chamado "Sturm
und Drang" (Tempestade e Ímpeto), movimento literário precursor do romantismo alemão,
que combatia as convenções do
classicismo francês e do racionalismo iluminista em nome de
uma redescoberta de instintos,
paixões e forças da natureza.
"O Novo Menoza" (1774), peça recém-encenada pelo Teatro
da Cornucópia, em Lisboa, com
lançamento simultâneo da tradução de José Miranda Justo pela editora Cotovia, ilustra bem a
potência dessa obra que afirma,
com um humor e um sarcasmo
espantosos, a incompatibilidade
entre o homem e as restrições da
moral e dos costumes.
A peça, inspirada no texto de
um teólogo dinamarquês que alcançou grande sucesso em meados do século 18, conta a história
de um ingênuo príncipe oriental
em visita à Europa. O príncipe
quer conhecer os costumes e a
civilização ocidental. É recebido
por uma família provinciana
alemã e logo se apaixona pela filha do Capitão, Guilhermina,
com quem se casa.
Como nas comédias de Shakespeare, que Lenz tanto admirava (traduziu "Trabalho de
Amor Perdido"), há um jogo
frenético de troca de papéis e
identidades, com uma indefectível cena de baile de máscaras ao
final. A certa altura, o próprio
príncipe e seus anfitriões ocidentais descobrem que ele na
verdade não é príncipe nem
oriental, mas o filho que o casal
havia perdido quando pequeno.
A consternação é geral. Afinal,
o príncipe se casou com a própria irmã. No entanto, Lenz não
leva a sério o mito do filho pródigo. Ao contrário, aproveita o
tema do incesto para escarnecer
das convenções e apresentar
uma visão implacável da condição humana.
Convocada a analisar o caso, e
levando em conta a infelicidade
da noiva apaixonada, a Faculdade de Teologia local decide que o
incesto é válido. Assim também,
o pai, indignado com a fuga do
filho atormentado pela revelação, exige que o rapaz volte e assuma de uma vez por todas o casamento com a própria irmã. O
incesto passa a ser defendido pela lei. Tudo é relativo.
Como se não bastasse, em
oposição à ingenuidade e à retidão moral do falso príncipe, um
conde alemão tenta se livrar da
condessa que o ama, mandando
matá-la, ao mesmo tempo em
que segue com o intuito de possuir, nem que seja à força, a jovem Guilhermina recém-casada, por quem sente um desejo
desesperado.
A condessa, entretanto, sobrevive. E antes de sair atrás do homem que a mandou matar e que
ainda assim ela continua a amar
(aqui as pessoas amam e matam
como quem troca de roupa),
descobre que foi trocada na infância, e que é na realidade a verdadeira irmã do falso príncipe.
A dança das cadeiras prossegue, fazendo com que a cada ato
os personagens ocupem novos e
diferentes lugares nas relações
amorosas ou de parentesco. O
ritmo frenético dos diálogos e
das ações aparentemente despropositadas e inverossímeis revela não só a volubilidade dos
sentimentos de cada um no
meio desse caos, mas sobretudo
o abismo entre sentimento e desejo. Não é que não sintam o que
dizem, mas o que sentem não é o
que desejam.
Lenz faz do teatro um lugar de
redefinição do mundo. Tudo
parece inverossímil justamente
porque, ao contrário das aparências do mundo social, essa
"máquina esquizofrênica" apresenta sem meias medidas a cisão
entre a razão, os sentimentos e
os desejos. Os personagens são
marionetes nas mãos do desejo.
Ao final, resta apenas uma constatação diante da tragicomédia a
que estão sujeitos: que o desejo
pode até coincidir, mas nada
tem a ver com o amor.
O Novo Menoza ou História do Príncipe Tandi de Cumba
Autor: Jakob Lenz
Tradução: José Miranda Justo
Editora: Cotovia (Lisboa)
Quanto: 2.200,00 escudos (102 págs.)
Onde encomendar: www.lusabooks.com
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