São Paulo, sexta-feira, 24 de novembro de 2006

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Cinema - Crítica

"C.R.A.Z.Y." cativa ao retratar anos 70

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Reza a lenda recontada por quem já esteve quase "lá" que na hora da morte a gente revê a vida passar "como se fosse um filme". Resta saber se essa "experiência" não se tornou comum depois que o cinema foi inventado, mas o que não falta são filmes que contam a vida de um personagem com começos, meios e, às vezes, fim. "C.R.A.Z.Y. - Loucos de Amor" segue essa estrutura que todo mundo conhece. A diferença é que não só a vida que conta é muitíssimo interessante, como o modo de apresentá-la torna o filme no mínimo muito prazeroso de assistir.
Um fator essencial para obter esse efeito é a eficácia diabólica do roteiro, assinado também pelo próprio diretor, o canadense Jean-Marc Vallée. Do nascimento, na noite de Natal de 1960, até chegar aos 21 anos, em 1981, a narrativa acompanha os passos habituais de um personagem igual a qualquer um de nós. Mas as descobertas da infância, os percalços da adolescência e as ambigüidades da entrada na vida adulta são também passos de uma reinterpretação endemoniada da Paixão de Cristo.
Só que, em vez de sacralizar essa trajetória por meio da redenção, "C.R.A.Z.Y." lança seu herói num redemoinho profano, numa espécie de "evangelho segundo o demônio".
Em vez de desperdiçar sua melhor munição, o roteiro, tentando demonstrar com acrobacias que é capaz de fazer cinema "criativo", Vallée filma de maneira quase tradicional e usa o recurso de pontuar a história com canções de época (de alta voltagem pop) para aumentar a potência de sua obra.
Sem as canções para sinalizar as épocas, "C.R.A.Z.Y." perderia muito de sua ênfase, pois se trata mais que um filme centrado num personagem, mas de uma narrativa geracional.
A adoção da linearidade é um recurso que não implica, neste caso, limitações de significados, pois é com ela que o roteiro consegue transmitir a dinâmica de vai-e-vem entre o personagem e os valores de sua época. Tempos de rápidas mutações sociais e morais e, sobretudo, de modificações ao avesso de muitas certezas.
Internalizando essa visão, o filme faz coincidir a identificação do público com o personagem. Externalizando-a, sob a forma das canções e de progressões das épocas, escapa dos estreitamentos subjetivos e consegue trazer agarrado consigo inúmeros sentidos da palavra "história".


C.R.A.Z.Y. - LOUCOS DE AMOR     
Direção: Jean-Marc Vallée
Produção: Canadá, 2005
Com: Marc-André Grondin
Quando: a partir de hoje no Bombril 2, HSBC Belas Artes e circuito


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