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LUIZ FELIPE PONDÉ
Na caverna
Não consigo evitar sentir certa hipocrisia nessas manifestações tão indignadas
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TENHO DELÍRIOS góticos, um
pouco como o escritor Lovecraft. Será que existem dois
mundos? Num mais profundo, um
magma de seres viscosos flui no escuro de cavernas subterrâneas. Na
superfície vivemos ao sabor das
crenças e das técnicas, muitas delas
feitas da mesma matéria do vento
que passa.
Na superfície encontramos romanos vendo sua cidade como eterna,
cristãos esperando o fim do mundo,
lendo-o nos sinais dos tempos. Modernos supondo que carros, sexo livre, votos e o Mastercard criaram
um mundo sem aquele magma viscoso e escuro. Vejamos.
Lembra-se, caro leitor, quando
um cartunista foi objeto de protestos por parte de fanáticos religiosos
(no caso, os muçulmanos) por ter
desenhado figuras engraçadas do
Maomé? Ou quando Salman Rushdie foi "condenado à morte", por
conta de um livro sobre o Alcorão
("Os Versos Satânicos")?
Em momentos como esses, é comum se defender a liberdade. Lembro-me de mim mesmo dizendo:
"Esses religiosos são um saco!". Acusar fanáticos religiosos de loucos é
fácil pra quem come o que quer, se
veste como quer, faz sexo com quem
quer.
Não consigo evitar sentir uma certa hipocrisia nessas manifestações
tão indignadas em favor da liberdade. Mas a hipocrisia é um ser viscoso
que habita as cavernas escuras. Convido o leitor a entrar nessas cavernas
comigo. Cuidado! O chão escorrega
e vemos vultos com nossos rostos
nessas cavernas.
Na semana passada eu escrevi, entre outras coisas, sobre a tendência
que temos em não percebermos
quando somos nós os preconceituosos (no caso, o preconceito comum
contra os EUA que circula nos jantares inteligente por aí). Preconceitos
também são viscosos.
Hoje, gostaria de refletir junto
com o caro leitor sobre outras hipocrisias. Por exemplo: defenderíamos
a liberdade caso fossem nossos os
ídolos agredidos?
A hipocrisia é uma coisa que me
fascina. Ela é necessária no cotidiano civilizado (o cotidiano também é
viscoso), como todos os pecados o
são. Mas acho belo o pecador que sabe que é pecador.
Ouvi dizer que fanáticos urraram
porque pintaram mulheres nuas onde não deviam. Os defensores da liberdade se revoltaram. Pessoalmente penso que não devemos pintar
mulheres peladas em igrejas ou coisas assim, mas mulheres nuas normalmente é coisa bonita de se ver e
gosto de vê-las pintadas por aí.
Imagine, caro leitor e cara leitora,
se alguém fizesse uma camiseta com
a figura do Che Guevara espancando
uma negra que gritasse "I love New
York"? Penso que a moçada do "Hay
que endurecer, pero sin perder la
ternura jamás" endureceria e perderia a ternura.
Será que alguém se disporia a
"provar" que o Che jamais faria uma
coisa dessas? Ou que ele foi um revolucionário light que não matou ninguém (muito menos negras)? Imagine se a charge viesse acompanhada de um texto falado por ele assim:
"Ou você me dá ou te mato, sua vadia
capitalista!".
Já que estamos no ramo das infâmias (que também são viscosas), vamos adiante. Peço ao leitor paciência. As vítimas de infâmias são muito
maiores do que as infâmias.
Dizem por aí que Marx não pagava
contas e deixou sua família morrer
de fome, muitas vezes, porque se
preocupava mais com a revolução e
"O Capital". Um pouco naquela linha de quem "ama a humanidade,
mas detesta seu semelhante".
Imagine uma charge em que aparecesse Marx sentado numa mesa
com taças de vinho e pratos chiques
transbordando comida. Imagine
agora que ele está dando uma gargalhada e dizendo: "Ainda bem que
existem otários que pagam minha
conta, como o burguês do meu sogro!". Será que haveria protestos?
Afinal, errar é humano, e o pobre
Marx talvez tenha pensado algo assim uma ou duas vezes, não?
Vamos adiante. Dizem por aí que
Foucault era muito vaidoso e que se
vestia muito bem. Normalmente isso é comum entre intelectuais. Mas,
afinal, vaidosos somos todos nós. A
técnica é mostrar que mesmo sendo
os melhores, somos modestos. Podemos fingir modéstia pela vaidade
de fingirmos que somos iguais aos
outros. A vaidade é viscosa.
Imaginem que um desses cartunistas espírito de porco resolvesse
pintar uma charge do Foucault, com
sua careca e óculos inconfundíveis,
numa Giorgio Armani. Agora imagine que ele, se olhando num espelho,
com as mãos suspensas em êxtase, e
com um sorriso de rainha-mãe, dissesse: "Espelho, espelho meu, existe
algum filósofo mais lindo do que
eu?". Quem for fanático que atire a
primeira pedra.
luiz.ponde@grupofolha.com.br
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