São Paulo, Sexta-feira, 24 de Dezembro de 1999


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTES PLÁSTICAS

Ana Maria Pacheco, 56, é a primeira artista não-européia convidada a expor na galeria inglesa

Brasileira quebra tabu na National Gallery


VALERIA ROSSI
especial para a Folha, em Londres

Desde setembro, muitos brasileiros que visitam Londres se surpreendem ao ver, espalhados pela capital, cartazes enormes anunciando a exposição da artista plástica brasileira Ana Maria Pacheco.
Pouquíssimo conhecida no Brasil, essa goiana de 56 anos alcançou um reconhecimento como poucos no exterior: ela é a primeira artista não-européia a ser convidada a expor na tradicional National Gallery, localizada no coração de Londres, na Trafalgar Square.
A National Gallery é um dos museus mais visitados da cidade e tem em seu acervo trabalhos de Velázquez, Leonardo da Vinci, Boticelli, Van Dyck e Turner, entre outros grandes nomes.
Além de expositora, Pacheco, que mora na Inglaterra desde 73, passou a ser artista associada do museu. Ela é a quarta pessoa a ser convidada para o cargo e a primeira nascida fora da Europa.
Há dois anos e meio, a brasileira mudou o seu ateliê de Norwich, no interior da Inglaterra, para um espaço dentro da própria National Gallery para trabalhar na exposição que está atualmente em cartaz e pode ser visitada até 9 de janeiro.
A mostra é o principal evento da National Gallery no momento e, desde a inauguração, em setembro, alcançou grande sucesso tanto de crítica quanto de público.
A principal peça da exibição é uma composição de 20 esculturas em madeira intitulada "Dark Night of the Soul" (Noite Negra da Alma). A figura central é um homem encapuzado atravessado com várias flechas, numa alusão ao martírio de são Sebastião, mas as figuras em volta dão margem a interpretações diferentes. Ana Maria joga com a ambiguidade para forçar diversas leituras do seu público.
Outra peça central é a trilogia de pinturas "Luz Eterna", que explora os tormentos e tentações de santo Antônio. Mais uma vez, Pacheco coloca os personagens em situações contemporâneas -os demônios tradicionais são substituídos por helicópteros na interpretação moderna da artista.
A Folha conversou com Ana Maria Pacheco, em seu ateliê, em Londres, sobre o seu trabalho e o reconhecimento artístico na Inglaterra e do Brasil.

Folha - A sra. é a primeira artista plástica não-européia a ser convidada a trabalhar com a National Gallery. O que acha que atraiu os europeus?
Ana Maria Pacheco -
Em primeiro lugar, é um enorme reconhecimento do conjunto de um trabalho. Eu não exponho sempre, mas representantes do museu já haviam visto peças minhas e acharam que eu tinha o perfil para fazer essa exposição e trabalhar no museu, o que é uma honra. Eu sou a quarta pessoa a ser convidada e fui chamada e aceita pelo que sou, por isso essa não é uma honra só minha, mas brasileira. No caso dessa exposição, o objetivo é fazer uma ponte entre o meu próprio trabalho e o acervo do museu.
No meu caso, como eu não sou européia -apesar de a minha formação ter sido bem clássica-, a minha leitura é considerada muito original. Eu sei que os meus antecessores tiveram certa dificuldade em fazer referência a trabalhos clássicos, mas eu não tive esse problema.

Folha - Por que as referências a são Sebastião em seu trabalho?
Pacheco -
É curioso, porque, quando fui convidada para trabalhar na National Gallery, eu já vinha visitando o museu há um bom tempo porque aqui há muitas pinturas de são Sebastião e eu já estava desenvolvendo um projeto nessa direção. É uma das iconografias mais tradicionais e conhecidas do mundo cristão. De modo que o convite foi uma feliz coincidência, porque eu pude fazer a ponte entre as duas coisas.

Folha - Qual foi motivo que a levou a trocar o Brasil pela Inglaterra, em 1973?
Pacheco -
Eu tinha 30 anos e trabalhava em artes plásticas havia algum tempo. Olhando para trás é mais fácil articular, mas na época eu sabia que faltava alguma coisa em meu trabalho -um elo. Eu pensei que o melhor lugar para descobrir esse elo seria a Europa, porque nós temos muita herança européia, principalmente com o barroco.
Eu ganhei uma bolsa do Conselho Britânico e acabei vindo para a Inglaterra, um lugar onde, ironicamente, ninguém gosta do estilo barroco. Depois, comecei a desenvolver o meu trabalho aqui e não vi razão para voltar para o Brasil. Mas eu sempre fiz muita força para manter as minhas raízes. Eu sou brasileira e, por consequência, a minha arte também é. Eu não quero ser uma imitação do que acontece na Europa.

Folha - Além de referência a trabalhos tradicionais, a senhora também se inspira em fotojornalismo e outras referências. Como é esse cruzamento?
Pacheco -
Eu sou influenciada por tudo o que vejo. No caso do são Sebastião, eu também me inspirei numas fotografias de uma execução de um bandido na Baixada Fluminense. Uma outra fotografia da guerra de Canudos, no século passado, também me impressionou muito. Não tenho um fotógrafo preferido. O que me interessa é a imagem.

Folha - A sua técnica em pintura é muito peculiar. A sra. poderia explicar como faz os seus quadros?
Pacheco -
A minha formação é na escultura. Só comecei a pintar na Inglaterra. Por isso acho que importei muitas técnicas utilizadas na escultura e na gravura para fazer as minhas pinturas. Em primeiro lugar, eu pinto sobre madeira, porque gosto de superfícies rígidas. Eu preparo a madeira com uma técnica antiquíssima, com gesso misturado com uma cola orgânica. Eu passo 20 camadas dessa mistura sobre a madeira e depois a lixo, para deixá-la lisa. O gesso tem pó de mármore e cal em sua composição. Por isso, quando se pinta a óleo sobre essa superfície o resultado é uma transparência muito grande.
Normalmente, em pintura, a luz é refletida por meio da cor, mas eu pretendo que a luz viaje por meio da cor. Eu não uso pincel. Uso algodão com náilon em volta, em forma de um pé de alho, que é um método que também importei da gravura. No fim do processo de pintura, eu encero a tela e depois lixo, deixando a superfície bem brilhante.

Folha - A sra. ressente o fato de não ser muito conhecida no Brasil?
Pacheco -
É claro que eu gostaria de ser mais vista no Brasil. Mas, por uma série de motivos, acabei desenvolvendo o meu trabalho aqui. É provável que eu faça uma exposição no Museu de Belas Artes do Rio em 2000, mas só de gravuras. Infelizmente no Brasil ainda existe uma mentalidade colonialista muito forte de seguir a moda, e o meu trabalho, apesar de ser contemporâneo, não segue a moda.


Texto Anterior: Santo foi tradutor da "Bíblia"
Próximo Texto: Artigo - Arnaldo Niskier: Peça critica descaso político na saúde
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.