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ARTIGO
Peça critica descaso político na saúde
ARNALDO NISKIER
especial para a Folha
O que faz um homem com as
responsabilidades do empresário
Antonio Ermírio de Moraes sair
de suas obrigações rotineiras e se
entregar à produção de uma peça
teatral? Aliás, produção é pouco,
pois ele concebeu inteiramente o
espetáculo, a partir mesmo da elaboração do seu bem construído
texto.
A resposta não é tão simples assim. A inspiração transcende os
limites da normalidade, alcançando um pouco, como me ensinou
Adonias Filho, o que chamamos
de mediunidade. Só quem escreve, e com periodicidade, entenderá essa verdade.
A convite do autor, um grupo
de acadêmicos foi assistir à peça
"S.O.S. Brasil", até pouco tempo
em cartaz no bonito teatro da
Faap, em São Paulo. Lygia Fagundes Teles, João de Scantimburgo,
Antonio Olinto e o cronista dividiram essa alegria com mais 350
pessoas, a lotação da casa.
Antes de entrar em pormenores
da peça, o resultado surpreendente: quando termina, o público em
peso se levanta e bate palmas com
força, como querendo demonstrar a sua total adesão à mensagem ali contida.
É uma forma de protesto contra
o descaso oficial em relação às políticas públicas de saúde. O autor é
do ramo, pois há muitos anos
passa todas as manhãs no hospital da Beneficência Portuguesa,
em São Paulo, presidindo a instituição -e de forma inteiramente
idealística. Os problemas se sucedem, a partir da nordestina Terezinha de Jesus dos Santos, que
veio do Ceará para tentar uma cura milagrosa em São Paulo.
O seu discurso é forte, ela é professora de ensino fundamental,
está perdendo a vista, mas é tratada em princípio com o desprezo
costumeiro, no hospital procurado. Repete o drama de milhares
de professoras do Nordeste que se
acostumaram aos salários miseráveis pagos na região, que no
fundo se bastam com a hipotética
proteção do INSS. Trocam aulas
por assistência à saúde (quando
isso é possível). Uma verdadeira
aberração da vida brasileira.
Quando perde a vista, porque já
não havia mais jeito (os cenários,
o som e a iluminação compõem
um quadro de grande perfeição
técnica), conformada, resolve
aprender braile, "para ensinar aos
milhares de deficientes visuais da
minha terra". O idealismo à frente
de tudo.
A peça tem diversos momentos
de grande força dramática e até
uma exploração de diálogos bem-humorados que dão vida ao espetáculo, não deixando jamais que
resvale para a monotonia.
Como no frente a frente entre o
general da reserva e o líder sindicalista (belíssima interpretação de
Rogério Fróes), que se encontram
no mesmo quarto de hospital, extravasando sentimentos de revoltas distintas. Para chegar à triste
conclusão: "Isso aqui não é um
hospital, é um autêntico salve-se
quem puder!".
A morte de um paciente pode
ser antecipada pela desídia dos
que não conseguem arrancar
uma unidade de transplante há
quatro meses no porto de Santos.
Não há força humana que faça
acelerar a libertação. Há críticas
amargas ao SUS, que paga aos
hospitais particulares ridículos
R$ 3 por consulta.
De quebra, cita-se a "maldita
CPMF", que não trouxe nenhum
benefício à saúde. Para concluir
com o protesto que levanta o público: "Chega dessa política de
privilégios!". Está de parabéns
Antonio Ermírio de Moraes, pelo
texto corajoso, feliz e oportuno.
Esperamos ainda muito mais da
sua inspiração de escritor e homem público.
Arnaldo Niskier é professor, escritor, jornalista e ex-presidente da Academia Brasileira
de Letras (biênio 1998-99).
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