São Paulo, Sexta-feira, 24 de Dezembro de 1999


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

Peça critica descaso político na saúde

ARNALDO NISKIER
especial para a Folha

O que faz um homem com as responsabilidades do empresário Antonio Ermírio de Moraes sair de suas obrigações rotineiras e se entregar à produção de uma peça teatral? Aliás, produção é pouco, pois ele concebeu inteiramente o espetáculo, a partir mesmo da elaboração do seu bem construído texto.
A resposta não é tão simples assim. A inspiração transcende os limites da normalidade, alcançando um pouco, como me ensinou Adonias Filho, o que chamamos de mediunidade. Só quem escreve, e com periodicidade, entenderá essa verdade.
A convite do autor, um grupo de acadêmicos foi assistir à peça "S.O.S. Brasil", até pouco tempo em cartaz no bonito teatro da Faap, em São Paulo. Lygia Fagundes Teles, João de Scantimburgo, Antonio Olinto e o cronista dividiram essa alegria com mais 350 pessoas, a lotação da casa.
Antes de entrar em pormenores da peça, o resultado surpreendente: quando termina, o público em peso se levanta e bate palmas com força, como querendo demonstrar a sua total adesão à mensagem ali contida.
É uma forma de protesto contra o descaso oficial em relação às políticas públicas de saúde. O autor é do ramo, pois há muitos anos passa todas as manhãs no hospital da Beneficência Portuguesa, em São Paulo, presidindo a instituição -e de forma inteiramente idealística. Os problemas se sucedem, a partir da nordestina Terezinha de Jesus dos Santos, que veio do Ceará para tentar uma cura milagrosa em São Paulo.
O seu discurso é forte, ela é professora de ensino fundamental, está perdendo a vista, mas é tratada em princípio com o desprezo costumeiro, no hospital procurado. Repete o drama de milhares de professoras do Nordeste que se acostumaram aos salários miseráveis pagos na região, que no fundo se bastam com a hipotética proteção do INSS. Trocam aulas por assistência à saúde (quando isso é possível). Uma verdadeira aberração da vida brasileira.
Quando perde a vista, porque já não havia mais jeito (os cenários, o som e a iluminação compõem um quadro de grande perfeição técnica), conformada, resolve aprender braile, "para ensinar aos milhares de deficientes visuais da minha terra". O idealismo à frente de tudo.
A peça tem diversos momentos de grande força dramática e até uma exploração de diálogos bem-humorados que dão vida ao espetáculo, não deixando jamais que resvale para a monotonia.
Como no frente a frente entre o general da reserva e o líder sindicalista (belíssima interpretação de Rogério Fróes), que se encontram no mesmo quarto de hospital, extravasando sentimentos de revoltas distintas. Para chegar à triste conclusão: "Isso aqui não é um hospital, é um autêntico salve-se quem puder!".
A morte de um paciente pode ser antecipada pela desídia dos que não conseguem arrancar uma unidade de transplante há quatro meses no porto de Santos. Não há força humana que faça acelerar a libertação. Há críticas amargas ao SUS, que paga aos hospitais particulares ridículos R$ 3 por consulta.
De quebra, cita-se a "maldita CPMF", que não trouxe nenhum benefício à saúde. Para concluir com o protesto que levanta o público: "Chega dessa política de privilégios!". Está de parabéns Antonio Ermírio de Moraes, pelo texto corajoso, feliz e oportuno. Esperamos ainda muito mais da sua inspiração de escritor e homem público.


Arnaldo Niskier é professor, escritor, jornalista e ex-presidente da Academia Brasileira de Letras (biênio 1998-99).


Texto Anterior: Artes plásticas: Brasileira quebra tabu na National Gallery
Próximo Texto: Fotografia: Fotógrafo registra paisagens e belezas naturais raras do país
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.