São Paulo, segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

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NELSON ASCHER

Aleksandr e Natália


Após desposar a moça tão cobiçada, o poeta russo viveu num inferno de boatos e ciúmes

QUANDO Aleksandr Serguêievitch Púchkin viu pela primeira vez Natália Nicoláievna Gontchárova num baile de fim de ano em Moscou, ele tinha 29 anos e ela, 16. Dizer que, da parte de Púchkin, teria sido amor à primeira vista não refletiria seu temperamento que, cínico e precocemente desiludido, era antes o de um sedutor experiente cuja paixão se manifestava através de conquistas em série e ciúmes obsessivos, não do idílio sentimental e inocente. Ainda assim, por um lado decidido a se estabelecer e formar família e, por outro, fascinado pela beleza da moça (a respeito da qual não faltam testemunhos contemporâneos), ele logo a pediu em casamento.
Quanto à jovem, ela não se mostrou demasiado interessada. Sem contar com grandes títulos aristocráticos, a filha de uma família cuja fortuna fora há pouco dilapidada ambicionava sobretudo a vida da alta sociedade e da corte. Educada em francês como era de costume, talvez seu russo nem sequer fosse suficiente, mesmo se alguém tão fútil o quisesse, para avaliar a estatura literária do pretendente. À espera de propostas melhores, sua mãe rejeitou a do escritor, mas não lhe fechou definitivamente as portas.
Decepcionado e disposto a mudar de clima, Púchkin (1799-1837), o maior poeta russo, verdadeiro fundador da literatura de seu país, resolveu viajar rumo ao sul, para o Cáucaso, onde a Rússia estava em guerra com o Império Otomano. Aquela era uma das direções nas quais o império dos tsares se expandia e a região, seja pelo calor, seja por seus costumes, chegou a ser comparada à Sicília. Em "Viagem a Erzerum durante a Campanha de 1829", ele recordaria com saudade a vista das altas montanhas e do vale do rio Aragva, a vida no acampamento militar e a visita aos banhos mistos de Tíflis/Tbilisi, capital da Geórgia.
Embora o Cáucaso, montanhoso, multiétnico e povoado por tribos guerreiras, excitasse o imaginário russo como a "fronteira" (o oeste) dos norte-americanos, o único poema relevante que Púchkin (que havia, na juventude, escrito epopéias com temas orientais) trouxe de lá foi a declaração de amor a Natália aqui traduzida, uma de suas composições líricas mais realizadas, em que um dos expoentes do romantismo europeu revela sua atração pelo equilíbrio e pela contenção precisa que caracterizam o ideal clássico.
De volta à Rússia urbana, Púchkin a desposou em fevereiro de 1831, mas não foi feliz com Natália, se bem que em versos famosos afirmasse preferir-lhe a frieza indiferente e a relutância de sua entrega aos êxtases explícitos de qualquer outra (dos quais, no entanto, não abrira mão). Como a beldade não deixasse de atrair atenções de todo tipo, o poeta russo, que tampouco dispunha dos recursos necessários para garantir-lhe a vida elegante que ela desejava, viveu os anos seguintes num inferno de boatos, ciúmes e problemas financeiros.
Tudo piorou quando um aristocrata francês bissexual, o barão Geoges-Charles D'Anthès, treze anos mais novo que o poeta, amante e, mais tarde, filho adotivo do embaixador holandês, passou a cortejar insistentemente sua mulher. A situação, que se encaminhava para o duelo, foi temporariamente aliviada pelo casamento de conveniência do francês com uma irmã de Natália.
Uma carta anônima, porém, "informando" o escritor de sua eleição "para a sereníssima ordem dos cornudos", tornou inevitável o desfecho. Ambos duelaram e, fatalmente ferido, Púchkin morreu, antes de completar 38 anos de idade, em 29 de janeiro de 1837. A viúva casou-se de novo e é possível que tenha se tornado, não muito depois, amante do tsar Nicolau 1º. D'Anthès sobreviveria ainda a outros duelos e só morreria em 1895.

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