São Paulo, segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

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Crítica/Música/"O Cravo Bem Temperado"

Zhu Xiao-Mei traz versão pessoal de Bach em álbum duplo

Em livro, pianista chinesa relembra período que foi enviada a campo de trabalho agrícola, quando foi afastada da música

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Na longa entrevista do encarte, Zhu Xiao-Mei fala de sustentar cada frase, nos prelúdios e fugas de "O Cravo Bem Temperado", como "a chama de uma vela numa noite ventosa". Também fala da dificuldade de evitar os maneirismos, por um lado, e a austeridade, por outro; e de uma potência da música ligada ao senso de continuidade, que não é outra coisa, afinal, senão "a continuidade da vida".
Essas e outras imagens servem para sugerir "aquilo que é tão difícil expressar com palavras", e que a audição desses discos torna imediatamente sensível e compreensível: uma visão pessoalíssima da música de Bach (1685-1750), não só como invenção das formas, mas também como testemunho, ou salvaguarda. Tocados como ela toca, esses 24 prelúdios e fugas são verdadeiros instrumentos de salvação -salvação de todos nós, agora, como já o foram, num sentido bem literal, para a própria pianista.
Nascida em Xangai, em 1949, a menina-prodígio Xiao-Mei estudava Bach desde pequena com o professor Pan Yiming, no Conservatório de Beijing. Deve a ele a noção de que a música exige, além de controle técnico, formação cultural ampla e domínio do espírito e do corpo.
Com a Revolução Cultural de Mao, em 1964, esse início de vida seria bruscamente interrompido. A adolescente foi enviada para um campo de trabalhos agrícolas, o que aliás aceitou sem revolta, convencida dos ideais maoístas. Denunciou o próprio pai e assistiu à cerimônia de humilhação pública de seu antigo professor. "Posso perdoar tudo -menos Mao", diz ela hoje. Essas e outras memórias estão no seu livro recém-lançado, "La Rivière et Son Secret" (o rio e seu segredo, ed. Robert Laffont).
Depois de cinco anos sem música, lentamente foi voltando ao piano. Conseguiu uma partitura do vol. 2 do "Cravo", que copiou inteira à mão. Estudava num quarto com temperatura próxima de zero, depois de convencer aos guardas de que se tratavam de arranjos de música folclórica chinesa.
Foram muitos anos assim, até 1980, quando Xiao-Mei emigrou para os EUA. Trabalhou como garçonete antes de conseguir vaga no Conservatório de Boston; depois na Universidade de Marlboro, com Rudolf Serkin. Mas não se adaptou. Há 20 anos mora em Paris, onde é professora no Conservatório Superior de Música. "Sou pessimista", declarou numa entrevista ao "Figaro" (13/12/07). "Vejo o mundo sem cores, sombrio. Luz, para mim, quer dizer serenidade; e é na música, às vezes, que consigo encontrá-la." A frase dá outro sentido às delicadezas dessa gravação, que alterna o mais preciso rendilhado do contraponto com vagas líquidas da melodia. Pressão e leveza, movimento e estase, camadas e camadas de música sobrepostas num outro tempo, que deixa entender tudo, como se fosse uma versão viva do espaço.
Tudo aqui parece num limite do possível, sem exibir o menor exagero. Tudo respira, na fronteira de algo profundo ou preciso demais para qualquer outra forma de expressão. O que esse algo pode ser ela mesma sugere, quando diz, com concisão de epigrama, que não busca outra coisa senão "a melhor qualidade possível de silêncio".


J.S. BACH: O CRAVO BEM TEMPERADO, vol. 2
Artista:
Zhu Xiao-Mei
Lançamento: Mirare
Quanto: importado (CD duplo), 21,47 (R$ 55), em www.amazon.fr
Avaliação: ótimo


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