UOL


São Paulo, sábado, 25 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVRO/LANÇAMENTO

"O ESTRANGEIRO"

Reunida em 3 CDs, leitura radiofônica do escritor para seu principal romance é sucesso na França

Voz de Camus revela o Meursault trágico

ALCINO LEITE NETO
DE PARIS

Como se estivesse lendo um boletim meteorológico incerto, o escritor Albert Camus fala: "Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei". É o famoso início de "O Estrangeiro", seu principal romance, publicado em 1942. É também o começo do CD "O Estrangeiro", que resgata a leitura desse clássico do século 20 feita pelo próprio autor em 1954 para a rádio France 4.
A leitura integral, que permanecia inédita em CD, foi reunida em três discos de quase três horas de gravação e acaba de sair na França. É um sucesso estrondoso. Nos primeiros dias após o lançamento, esgotou nas livrarias.
Ao mesmo tempo, chegaram às estantes francesas três livros do escritor: "Camus à Combat", com seus artigos no jornal "Combat", entre 1944 e 1947, "Croniques Algériennes 1939-1958", em formato de bolso, com textos a respeito da Argélia, seu país de origem, e a antologia "Réflexions sur le Terrorisme", que reúne escritos de origens diversas tratando de violência política.
A versão radiofônica de "O Estrangeiro" foi transmitida em três dias de abril de 1954, na série "Leituras à Noite", da Rádio Diffusion Française. Albert Camus (1913-1960) já era um celebrado escritor e intelectual. Três anos mais tarde receberia o Prêmio Nobel de Literatura. "O Estrangeiro" foi publicado 12 anos antes, em 1942.
"É Kafka escrito por Hemingway", observou Sartre, em 1943, sobre o livro. A novidade de "O Estrangeiro" foi seu estilo direto, de extrema objetividade, mas para descrever um conflito metafísico e um personagem situado nas extremidades da vida moral.
Meursault é o personagem. Funcionário de um escritório em Argel, ele recebe a notícia da morte de sua mãe, num asilo. Durante o enterro, não manifestará nem uma emoção sequer. Mais tarde, passeando na praia, matará um árabe, sem razão nenhuma. No seu julgamento, ao perguntarem sobre a razão do crime, ele dirá que foi "por causa do sol".
Meursault é julgado menos pelo assassinato e mais por sua "insensibilidade". Todo o romance é em primeira pessoa -até o personagem enfrentar a guilhotina.
A leitura radiofônica de Camus é um deslumbramento. A dicção é muito contemporânea, sem afetação nenhuma. As pontuações discretas do escritor e as suas ligeiras alterações de tom permitem (re)descobrir o quanto existe de construção rítmica rigorosa na sintaxe do livro. Lido por Camus, o longo monólogo enfatiza importantes contrapontos e leitmotivs -como a visão da natureza indiferente e as variações em torno da frase "não é minha culpa".
As diferenças no estilo das duas partes do livro se acentuam -a primeira é mais descritiva e seca, a segunda é mais dramática.
Não é apenas um livro que Camus está lendo, mas uma "voz" que ele está construindo na leitura, a de Meursault. Na narração de Camus, o personagem está longe de ser irônico, cínico ou relativista. A respiração, a tensão, a poesia e a controlada dramaticidade da voz do escritor não deixam dúvidas: Meursault é um herói trágico.


L'ETRANGER - De: Albert Camus. Álbum com três CDs. Leitura do romance pelo autor. Frémeaux & Associes/Ed. Gallimard. Quanto: 29,90 (R$ 115)
CAMUS À COMBAT - De: Albert Camus. Editora: Gallimard. Quanto: 35 (R$ 135) (748 págs.).
CRONIQUES ALGÉRIENNES 1939-1958 - De: Albert Camus. Editora: Gallimard. Quanto: 5,90 (R$ 23) (212 págs.).
REFLÉXIONS SUR LE TERRORISME - De: Albert Camus. Editora: Nicolas Philippe. Quanto: 17,5 (R$ 67) (264 págs.).



Texto Anterior: "A Vida Íntima das Palavras": Escritor utiliza etimologia para criar abecedário de curiosidades
Próximo Texto: Ensaios: Nélida Piñon reflete sobre legado da AL
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.