São Paulo, terça-feira, 25 de janeiro de 2005

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FERNANDO BONASSI

O Pequeno Príncipe

O Pequeno Príncipe Harry achou que podia vestir uma camisa listada de suástica e sair por aí, tomando, de canudinho, vodca russa com limão Taiti bem azedinho... Poder até que ele tinha, ainda que fosse mais figurativo do que econômico. Talvez por isso cause espanto agônico que um rapaz dessa estirpe desconheça a força dos símbolos das fardas bem cortadas que os seus próprios antepassados impressionados outrora enfrentaram. Nunca tantos tiveram tanto bode de tão poucos, essa é que é a amarga verdade.
O Pequeno Príncipe Harry, de todo modo, não foi mesmo doce. Fumou ervas proibidas em surdina, conheceu gostosas duvidosas em poses nada bíblicas, apareceu naquela festa escandalosa pensando que era o tal que era, fazendo cara severa e dolosa, fumando um cigarro canceroso e posando como o famoso Dirty Harry que não era, além de distribuir papos e sopapos diante dos olhos e ouvidos ávidos dos fotógrafos e pornógrafos contratados ao peso de nossa curiosidade. Não era tão forte nem tão talentoso; nem o velho Clint brincaria com isso, ouviste, menino?!
De mais a mais, os heróis do cinema americano não se deixam imitar tão facilmente por playboys de impérios e estúdios decadentes, onde o sol agora se levanta com os insurgentes, por mais azuis que sejam as suas sementes, vivendo das ilusões incongruentes dos séculos passados, da falta de privacidade e escrúpulos dos amigos, inimigos e parentes.
Aliás, uns e outros parecem esquecer que as monarquias mais longevas foram as primeiras a experimentar em seus pescoços o sabor do esforço de mudança do povo republicano esfomeado.
Dizem que o Pequeno Príncipe Harry tem problemas pessoais por ser o filho daquela uma com o filho daquela outra. Aquela outra esteve aqui e colocou uma pedra no caminho de um museu. Do filho dela, há quem duvide, podendo apresentar semelhanças esquecidas em poses esquisitas por fotos de jornal. Se for o pai, o pai pode até ser igualmente um príncipe, mas "rei Charles" mesmo... esse já morreu. Não enxergava um palmo diante do nariz, mas havia cativado mais súditos de mais reinos do que as reinações deste outro, que prefere o ócio de uma descarga ensangüentada no palácio. A mãe do Pequeno Príncipe Harry morreu embaixo de um viaduto, mais rica do que casada com um árabe. O viaduto era francês, e ela trafegava numa Mercedes Bens importada da Alemanha, correndo da sanha dos mesmos paparazzi que arrasam reputações com as suas revelações internacionais.
Ademais, o irmão do Pequeno Príncipe Harry, bem mais bonito e mais gostoso, é tão charmoso naquelas "Inglaterras" que o próprio pai de ambos pode se fingir de morto, preparando o trono para um dono mais garboso. A tia desquitada até que saiu estabanada em defesa do Pequeno, tentando apresentar-lhe mais ameno e menos perdido aos rabinos enfurecidos... As desculpas prometidas que vieram foram consideradas poucas e ruins. Muito piores do que lutar contra o marechal Rommel sob cem sóis no deserto africano.
Aliás não podemos desculpar quem tem culpa no cartório da memória pra honrar. Não será por sermos pobres e burros que haveremos de tolerar os urros de outros asnos, mesmo que sejam nobres e teimem em fazer valer a força, em vez do jeito. De "jeitinho" nós entendemos, ainda que não prendamos ninguém de qualquer maneira pelos abusos obscuros das besteiras que esclarecem nossa história. Nossa história é antiga, mas a dele é ainda mais, tornando tudo mais caquético e patético, não fosse nem o primeiro ou o segundo dessa nobreza estonteante a flertar com um mundo de uniformes galantes e a possibilidade de mandar dos governantes sem os limites da civilidade, da revolução e da decência.
O fato que deveria ser estampado é que o Pequeno Príncipe Harry perdeu uma ótima oportunidade de passar calado. Agora ninguém mais quer falar disso, especialmente porque em Auschwitz, que faz aniversário de 60 anos, o que mais se ouve são os comentários insanos que os cadáveres tortos fazem em silêncio, no fundo das valas numeradas e das piscinas de cinzas preservadas, onde queimaram por não ser o que não eram, nem fantasiados.
Há os que o defendam argumentando o aspecto terciário de sua presença naquele Estado de coisas britânicas; que as coisas que os bobos das cortes fazem não necessariamente expressam o que os soldados mortos em combate pensavam daqueles sinais odiosos. Nesses casos será preciso dizer que justamente por ser simbólico, mais obrigação a dinastia teria com as imagens exibidas nesses tablóides loucos pra vender barato uma vergonha. Vergonha ele não teve, ou não precisa, já que não vai pagar muito por isso. Seus antepassados nunca se deram bem com os papas e não seria agora que deixariam o garoto ser crucificado por um católico polaco.
O Pequeno Príncipe Harry passaria no provão sem as pistas das professoras de oposição trabalhista? Voaria embriagado de cachaça no sucatão avacalhado com o risco de uma bad trip? Tomaria bloody mary no gargalo num camarote VIP, entre mulatas arranjadas? Estaria a moral do Pequeno Príncipe Harry rebaixada com o terceiro lugar na sucessão?
Só mesmo os nazistas de plantão ficaram emocionados com a menção, mas tiveram o bom senso -até onde foi possível pra eles- de ficarem quietos.
Pode ser apenas que o Pequeno Príncipe Harry pense que é Harry Potter, misturando o tempo e as estações como se fossem as poções de uma bruxa apalermada. Demais ironias à parte, o Pequeno Príncipe Harry é responsável pelo que cativa, especialmente quando cultiva mais irresponsabilidade histórica.


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