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CONTARDO CALLIGARIS
Você quer mesmo ser feliz?
O imperativo de felicidade é enganoso, mas rege nossa organização social
CIRCULA, NOS meios acadêmicos ingleses e americanos, a
expressão "happiness studies" (estudos da felicidade), calcada, por exemplo, em "women's studies" (estudos das mulheres). Talvez
apareçam, em breve, departamentos universitários multidisciplinares de "estudos da felicidade".
Pois bem, no campo dos "estudos
da felicidade", acabam de sair dois livros notáveis.
O primeiro, ainda não traduzido
para o português, é "Happiness: A
History" (felicidade, uma história),
de Darrin McMahon (Atlantic
Monthly). McMahon reconstrói as
mudanças pelas quais passou nossa
concepção de vida feliz: uma vida
virtuosa, para os gregos antigos; prazerosa, para os romanos; merecedora do paraíso, para os cristãos etc.
Aliás, é sobretudo com os cristãos
que a felicidade começa a se confundir com a promessa de uma vida melhor no futuro, após a morte.
Na modernidade, a definição do
que nos faz felizes fica bastante incerta, mas, paradoxalmente, a exigência de sermos felizes (sem saber
direito o que isso significa) torna-se
irrenunciável. Esse imperativo enigmático é uma peça essencial de nossa organização social. Explico.
A felicidade é, hoje, uma aspiração
obrigatória que, por sua indefinição,
não pode ser satisfeita. Portanto, ela
alimenta uma sede insaciável de objetos e prazeres. Essa sede sustenta
nosso modo de produzir e consumir
e nos leva a organizar nossas diferenças sociais segundo os "sonhos"
que cada um conseguiu realizar (ou
seja, pela inveja).
O outro livro é "Stumbling on
Happiness" (tropeçando na felicidade), de Daniel Gilbert. Apesar da tradução portuguesa do título ("O que
nos Faz Felizes", Campus), não se
trata de um livro de receitas para
sermos felizes, mas de uma explicação da dificuldade desse projeto.
Gilbert, evocando brilhantemente
uma quantidade de pesquisas, mostra o seguinte: uma propriedade de
nossa espécie é a capacidade de imaginar o futuro, mas, nessa tarefa, somos péssimos. Por isso, a felicidade
desejada e alcançada nunca é bem o
que a gente queria.
Para Gilbert, o problema é cognitivo: o futuro com o qual sonhamos
não nos outorga a felicidade esperada porque não sabemos prevê-lo
corretamente.
Aparte: de fato, há outras razões
para que o futuro nunca chegue ou,
ao chegar, seja decepcionante. Por
exemplo, como lembra o título de
um livro de Jorge Forbes ("Você
Quer o que Deseja?"), nem sempre
queremos efetivamente o que desejamos e planejamos.
Num capítulo de seu livro, Gilbert
recorre a uma metáfora genética.
Um "super-replicador" é um gene
que se replica com sucesso porque
ele leva seu portador a transmitir
ativamente seus genes. Exemplo:
imaginemos que exista um gene do
prazer no orgasmo. Mesmo que esse
gene não seja necessário para a reprodução (que pode acontecer sem
prazer) e mesmo que ele seja associado com uma série de traços ruins
(doenças ameaçadoras), ele se replicará porque leva seus portadores
a praticar mais sexo do que os
outros (aumentando as chances de
transmissão).
Gilbert aplica esse princípio às
crenças: há crenças falsas que se
propagam e se transmitem porque
sustentam sociedades estáveis, e
uma sociedade estável é o ambiente
ideal para a propagação de crenças
(falsas ou verdadeiras). No caso,
nossa concepção da felicidade se parece muito com uma crença falsa super-replicada, ou seja, uma crença
que se propaga porque, apesar de ser
falsa, ela é uma condição de nossa
coesão social (e a coesão social facilita a propagação das crenças). Em suma, o imperativo de felicidade é enganoso, mas rege nossa sociedade;
portanto, ele só pode se reproduzir.
Uma nota. Gilbert parte do pressuposto que faz funcionar nossa sociedade: a felicidade depende da realização de um futuro que desejamos
e imaginamos.
Uma outra concepção da felicidade (a minha preferida) diz que ela
depende da qualidade da experiência presente, e não da realização de
nossos projetos. Talvez essa seja
uma concepção nostálgica de um
momento qualquer na história reconstruída por McMahon.
Ou talvez seja uma concepção nova, que vem se afirmando devagar,
de Nietzsche até a contracultura dos
anos 60 e 70 (o próprio Gilbert se
lembra do livro, meio delirante, de
Ram Dass, que se intitulava "Be Here Now" -esteja aqui agora).
Seja como for, neste começo de
2007, fico com aquele ditado chinês:
que todos possamos viver um ano
não "feliz", mas interessante.
ccalligari@uol.com.br
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