|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
As Sextas-Feiras Santas de um pecador precoce
A Sexta-Feira Santa
me traz algumas recordações, não as de fundo religioso,
esmaecidas pela dissipação a que
o mundo me levou -eu próprio
colaborando para a dissipação,
que nada me trouxe de bom. Gostava das cerimônias na antiga catedral do Rio, que fora a capela
oficial dos tempos imperiais. Elas
quebravam a rotina da vida escolar, tinham muito de teatro, no
qual eu participava como figurante mais do que secundário, balançando com a dignidade possível o turíbulo para manter, vermelhas, as brasas que queimariam o incenso que o cardeal nelas derramaria.
Gostava daquele cheiro, da nuvem esbranquiçada que perfumava o altar barroco e despojado.
Sem as toalhas de linho, na nudez
do mármore frio, o altar parecia
um túmulo vazio e triste, como
tudo era vazio e triste nas Sextas-Feiras Santas do passado.
Recordação também da história que a mãe contava, durante a
canjica ritual que todos tomávamos para "forrar o estômago"
-a expressão era a desculpa oficial do pai, que aproveitava a seu
modo o dia de jejum e abstinência que fazia das principais refeições um simulacro dos rega-bofes
habituais de todos os feriados.
Por conta do jejum aconselhado
pela igreja e da abstinência da
tradição familiar, o pai passava o
dia forrando o estômago dele
-era o dia do ano em que mais
saciava sua gula formidável.
A mãe contava a história de
uma aldeia perdida, acho que no
Pará. O povo revoltara-se contra
a religião, expulsara o vigário,
profanara as imagens, saqueara a
igreja e, para provar que vivia
bem sem respeitar o dia sagrado,
promovia um baile na Sexta-Feira Santa, quando todos participavam da dança que começava às
3h da tarde, hora em que, Cristo
expirara na cruz do Calvário.
A farra se estendia até a meia-noite, quando os sinos de outrora
voltavam a bimbalhar, anunciando a glória do Senhor sobre o
mundo dos mortos. Cantavam,
em roda, uma cantiga folclórica,
cujos versos não esqueci: "Ai! Meu
Bendegó! Ai! Meu bem xodó!
Quero ver minha morena dançar
o catimbó!"
Num determinado ano, a dança começou na hora marcada, o
dia foi morrendo, veio a noite, a
madrugada nasceu e se tornou
dia, e ninguém parava de dançar
em roda e cantar "Ai! Meu Bendegó! Ai! Meu bem xodó!".
O novo dia entardeceu, veio a
noite outra vez e ninguém parava
de cantar e dançar. Passou a semana, passou o mês, passou o ano
e a roda continuava, rostos afogueados, pés marcando o ritmo,
monótono e infernal. Outro ano
se passou, ninguém abandonava
a roda, todos condenados a pular
e a cantar. Acontece que o chão,
de tanto ser pisado, foi afundando, afundando. Anos depois, todos foram tragados pela terra,
mas não paravam de cantar o
Bendegó, o xodó e a morena que
dançava o catimbó.
Até hoje -e minha mãe mudava o tom da narração, tornando-a mais dramática, terrível-, nasce um capim rasteiro sepultando
os profanadores do dia mais sagrado da cristandade. E quem,
por acaso, colocasse o ouvido no
chão, das entranhas da terra ouviria o ritmo da dança, abafado
pelo túmulo sem fundo que tragara a aldeia infiel. Podiam-se distinguir os versos da maldição divina: "Ai! Meu bendegó! Ai, meu
bem xodó! Quero ver minha morena dançar o catimbó!".
Aquilo me causava pânico, um
horror que conservo até hoje. Mas
guardo outra recordação do dia
sagrado. Aproveitando os feriados, havia anos em que íamos para a casa do tio Joaquim Pinto
Montenegro, em Rodeio, pequenina povoação na serra do Mar,
hoje cidade Paulo de Frontin. A
casa do tio ficava bem embaixo
da estação construída pelo engenheiro que deu nome ao local. Eu
adorava trens naquela época,
queria ser maquinista da Central
do Brasil. Quando as velhas locomotivas "made in England" deixavam para trás o túnel 11, elas
vinham apitando, anunciando a
sua chegada, aquele apito fundo e
melancólico que ficava ecoando
nas montanhas e dentro de mim.
Eu corria para ver os trens,
odiava os expressos que iam diretamente para São Paulo ou Belo
Horizonte e ali não paravam. Ficava sozinho nas plataformas
desprezadas olhando o carro-restaurante, orgulhoso, em cujas
mesinhas havia sempre uma pequenina jarra com cravos vermelhos. Ao sumir no imenso, no terrível túnel 12, o maior da América
do Sul na opinião de Joaquim
Pinto Montenegro, eu me prometia, custasse o que custasse, ser um
dia senhor e servo de uma daquelas máquinas que me enchiam de
assombro.
Nas Sextas-Feiras Santas, dentro da tradição de um povo comportado e respeitador, os trens
não apitavam. Um pano roxo envolvia a chaminé das máquinas
silenciosas. O trem-fantasma deslizava sem deixar vestígios, somente o cadenciado das rodas
atritando nos trilhos parecia
marcar a passagem do monstro
que logo sumiria no ventre escuro
e indevassável do maior túnel da
América do Sul.
Eu voltava para casa mais triste. Recusava-me a participar da
canjica medonha que todos devoravam para forrar o estômago.
Sem culpa precisa no cartório, o
estômago pagava o preço da penitência que nunca fiz, mas da qual
nunca me libertei.
Texto Anterior: Animação: "Gary, o Advorato" desanca Estados Unidos Próximo Texto: Panorâmica - Celebridade: Cantora se interna em clínica Índice
|