São Paulo, sexta-feira, 25 de março de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

As Sextas-Feiras Santas de um pecador precoce

A Sexta-Feira Santa me traz algumas recordações, não as de fundo religioso, esmaecidas pela dissipação a que o mundo me levou -eu próprio colaborando para a dissipação, que nada me trouxe de bom. Gostava das cerimônias na antiga catedral do Rio, que fora a capela oficial dos tempos imperiais. Elas quebravam a rotina da vida escolar, tinham muito de teatro, no qual eu participava como figurante mais do que secundário, balançando com a dignidade possível o turíbulo para manter, vermelhas, as brasas que queimariam o incenso que o cardeal nelas derramaria.
Gostava daquele cheiro, da nuvem esbranquiçada que perfumava o altar barroco e despojado. Sem as toalhas de linho, na nudez do mármore frio, o altar parecia um túmulo vazio e triste, como tudo era vazio e triste nas Sextas-Feiras Santas do passado.
Recordação também da história que a mãe contava, durante a canjica ritual que todos tomávamos para "forrar o estômago" -a expressão era a desculpa oficial do pai, que aproveitava a seu modo o dia de jejum e abstinência que fazia das principais refeições um simulacro dos rega-bofes habituais de todos os feriados.
Por conta do jejum aconselhado pela igreja e da abstinência da tradição familiar, o pai passava o dia forrando o estômago dele -era o dia do ano em que mais saciava sua gula formidável.
A mãe contava a história de uma aldeia perdida, acho que no Pará. O povo revoltara-se contra a religião, expulsara o vigário, profanara as imagens, saqueara a igreja e, para provar que vivia bem sem respeitar o dia sagrado, promovia um baile na Sexta-Feira Santa, quando todos participavam da dança que começava às 3h da tarde, hora em que, Cristo expirara na cruz do Calvário.
A farra se estendia até a meia-noite, quando os sinos de outrora voltavam a bimbalhar, anunciando a glória do Senhor sobre o mundo dos mortos. Cantavam, em roda, uma cantiga folclórica, cujos versos não esqueci: "Ai! Meu Bendegó! Ai! Meu bem xodó! Quero ver minha morena dançar o catimbó!"
Num determinado ano, a dança começou na hora marcada, o dia foi morrendo, veio a noite, a madrugada nasceu e se tornou dia, e ninguém parava de dançar em roda e cantar "Ai! Meu Bendegó! Ai! Meu bem xodó!".
O novo dia entardeceu, veio a noite outra vez e ninguém parava de cantar e dançar. Passou a semana, passou o mês, passou o ano e a roda continuava, rostos afogueados, pés marcando o ritmo, monótono e infernal. Outro ano se passou, ninguém abandonava a roda, todos condenados a pular e a cantar. Acontece que o chão, de tanto ser pisado, foi afundando, afundando. Anos depois, todos foram tragados pela terra, mas não paravam de cantar o Bendegó, o xodó e a morena que dançava o catimbó.
Até hoje -e minha mãe mudava o tom da narração, tornando-a mais dramática, terrível-, nasce um capim rasteiro sepultando os profanadores do dia mais sagrado da cristandade. E quem, por acaso, colocasse o ouvido no chão, das entranhas da terra ouviria o ritmo da dança, abafado pelo túmulo sem fundo que tragara a aldeia infiel. Podiam-se distinguir os versos da maldição divina: "Ai! Meu bendegó! Ai, meu bem xodó! Quero ver minha morena dançar o catimbó!".
Aquilo me causava pânico, um horror que conservo até hoje. Mas guardo outra recordação do dia sagrado. Aproveitando os feriados, havia anos em que íamos para a casa do tio Joaquim Pinto Montenegro, em Rodeio, pequenina povoação na serra do Mar, hoje cidade Paulo de Frontin. A casa do tio ficava bem embaixo da estação construída pelo engenheiro que deu nome ao local. Eu adorava trens naquela época, queria ser maquinista da Central do Brasil. Quando as velhas locomotivas "made in England" deixavam para trás o túnel 11, elas vinham apitando, anunciando a sua chegada, aquele apito fundo e melancólico que ficava ecoando nas montanhas e dentro de mim.
Eu corria para ver os trens, odiava os expressos que iam diretamente para São Paulo ou Belo Horizonte e ali não paravam. Ficava sozinho nas plataformas desprezadas olhando o carro-restaurante, orgulhoso, em cujas mesinhas havia sempre uma pequenina jarra com cravos vermelhos. Ao sumir no imenso, no terrível túnel 12, o maior da América do Sul na opinião de Joaquim Pinto Montenegro, eu me prometia, custasse o que custasse, ser um dia senhor e servo de uma daquelas máquinas que me enchiam de assombro.
Nas Sextas-Feiras Santas, dentro da tradição de um povo comportado e respeitador, os trens não apitavam. Um pano roxo envolvia a chaminé das máquinas silenciosas. O trem-fantasma deslizava sem deixar vestígios, somente o cadenciado das rodas atritando nos trilhos parecia marcar a passagem do monstro que logo sumiria no ventre escuro e indevassável do maior túnel da América do Sul.
Eu voltava para casa mais triste. Recusava-me a participar da canjica medonha que todos devoravam para forrar o estômago. Sem culpa precisa no cartório, o estômago pagava o preço da penitência que nunca fiz, mas da qual nunca me libertei.


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