São Paulo, quarta, 25 de março de 1998

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Inconsciência ocupa lugar nos quadros de Botero

MARCELO COELHO da
Equipe de Articulistas

Está aberta a temporada de exposições de artes plásticas em São Paulo. Bourdelle, Botero, De Chirico, mestres holandeses, todos parecem competir pelo público, que é sacudido de casa e se vê disposto a enfrentar uma fila moderada.
Virou uma espécie de mania. O paulistano comprova duas convicções muito suas, a de que São Paulo é uma metrópole e a de que todo cidadão gosta de fila. Não há tantas filas assim na Pinacoteca, onde se dá a exposição "Bourdelle". As filas para ver Botero são pequenas, se comparadas às da mostra "Monet", e estas são ainda menores quando nos lembramos do inferno "Rodin".
Mede-se, não sem razão, o sucesso de cada mostra pelo grau de sacrifício que impôs ao público. Aquilo que era característico das vanguardas -o desconforto que impunham à mentalidade do espectador- se transfere para tudo o que precede a exposição. Filas, estacionamento, trânsito, guardadores de carro, até se produzir uma aceitação conformada e uma admiração de shopping center.
Felizmente isso não tem acontecido o tempo todo. No ano passado, a exposição "Max Ernst", no MuBE, estava tranquilíssima, por exemplo. Mas daí surge uma espécie de fracasso. Como? O que faltou? Como não tem fila?
Intervém aí a publicidade. Não tenho nada contra o recurso a agências de publicidade para divulgar eventos culturais. Mas acho que o bombardeio de anúncios tende a ser contraproducente. Foi assim na exposição "Monet" -parecia que o mundo ia acabar, se você não visse aqueles quadros.
O caso Botero é francamente imbecilizador. Os anúncios brincam com uma obviedade: ele pinta gente gorda. Vá ver a Mona Lisa gorda. Vá ver a mulher gorda, vá ver o homem gordo.
Ora, por que raios eu tenho de ver essa obesidade toda? Faz bem o José Simão, que diz que está fora desse programa.
Mesmo assim, fui ver a exposição "Botero". O maior risco desse pintor é exatamente o da caricatura. Como tudo indica que ele faz caricatura -personagens gordíssimas-, tendemos a caricaturizar o próprio pintor: "Ah, o das personagens gordíssimas!". E a propaganda contribui para isso.
De modo que as coisas se resumem ao plano da constatação, da vverificação de fato, quanta gordura! A publicidade enfatiza o aspecto humorístico de Botero.
Sem dúvida, esse aspecto existe. Sem dúvida, Botero se repete infinitamente. Mas não é um pequeno prazer o de acompanhar o quanto ele pode introduzir de variações nessa fórmula meio óbvia, a da gordura. Vendo a exposição, cada quadro aparece como uma nova solução dentro dos rígidos limites impostos pelo pintor. Como fazer uma natureza-morta "gorda"? Como pintar flores "gordas"? Ele consegue.
Mas estamos ainda no campo da apreciação banal. Não pretendo provar que Botero é um grande artista, mas tento seguir um raciocínio.
À primeira vista, é claro o intuito crítico, de esquerda, nas obras de Botero. Quando ele retrata uma burguesia obesa, um presidente e sua primeira-dama redondos e vazios, tudo se resume a uma fórmula ideológica: eis o retrato da opressão latino-americana, eis a banalidade satisfeita da classe dominante.
Só que não é bem assim. Botero pinta guerrilheiros, pinta Jesus Cristo, pinta gente do povo, pinta a Mona Lisa, pinta seu auto-retrato, seguindo a mesma estratégia de engordamento. O que isso quer dizer?
Ele faz referência a mitos e figuras consagradas da arte ocidental. Leonardo Da Vinci, os mestres holandeses, Velázquez, Cézanne, Picasso, tudo se transforma em gado, em boi gordo. O normal seria retratar "os inimigos" -os militares, os padres, os burgueses- como bois, preservando alguma nobreza, alguma elegância, algum empeno épico aos adversários do sistema.
Botero não salva ninguém nem a si mesmo: seus quadros o retratam como mais um gordo dentro da comédia. Por que?
É como se ele dissesse que toda arte burguesa é inflada e pomposa, que tanto Velázquez quanto o presidente da República podem ser objetos de uma mesma crítica. A inautenticidade dessas figuras vazias, com olhar idiota, não é ttipicamentelatino-americana. Ao contrário, de uma perspectiva latino-americana, tudo, mesmo a arte européia, assume um papel pomposo e idiota. A atitude oposicionista de Botero não se resume à crítica dos burgueses colombianos; universaliza-se, volta-se contra a Espanha e a tradição européia.
É como se um camponês muito magro, um desempregado urbano, um desvalido imaginasse o prestígio social e cultural de acordo com o critério da gordura -que unifica ditadores e presidentes civis, padres e grandes obras-primas.
Mas aí estaríamos diante de uma crítica bastante grosseira, e de uma pintura afinal medíocre. O pensamento de Botero, se posso dizer assim, é mais complexo.
Ainda que caricaturais, as pinturas de Botero não são engraçadas, não são humorísticas como faz crer a publicidade em torno da exposição. Botero pinta seus bonecos ridículos de forma solene, oficial. Imita o ponto de vista da arte popular. O que há de exato, de moroso, de fatual, de fotográfico na arte popular se reitera aqui, numa ironia sem obliquidade, sem "esperteza".
O que espanta nos quadros de Botero não é sua graça, mas sim o que têm de "literal". A imobilidade da pose, a uniformidade das cores, a ausência de vibração, de luz, de expressão, de movimento, tudo dá a idéia de uma pintura "documental", tão crua e nua como uma foto tirada em aparelho automático.
Essas fotos não são "críticas", a distorção e a gordura não são procedimentos expressivos. Botero simula uma espécie de falsa inconsciência. Sua denúncia social aparece em cores limpas, como que num tom ao mesmo tempo respeitoso e debochado. A ironia de Botero não é mais oblíqua, e sim frontal, quase ingênua no caprichoso e no realista do traço.
Seus personagens ocupam a tela como latifundiários. Expulsaram os posseiros, expulsaram os índios, expulsaram toda inquietação da tela: imobilizam-se. "Fotografados" por Botero, esse lambe-lambe, não se mexem mais. Nessa relação hierática, dura, plana com o espaço ilustram a realidade latino-americana. A de um vazio inchado, a de um território vago e entretanto com um dono; um espaço ocupado pela fatuidade, numa espécie de bócio mental. Se é que há mente. Nos quadros de Botero, assim como na América Latina, é como se a inconsciência ocupasse lugar.



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