São Paulo, quarta, 25 de março de 1998

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ARTES PLÁSTICAS
Anselm Kiefer constrói sua arte com mitos

CELSO FIORAVANTE
da Reportagem Local

O artista alemão Anselm Kiefer chegou anteontem ao Brasil para a inauguração de sua mostra, hoje, no MAM-SP.
No caminho entre o aeroporto e seu hotel, concedeu entrevista exclusiva à Folha. Perguntado se havia feito boa viagem, respondeu bem humorado: "Ótima. Vim vendo as estrelas. Esse é o meu trabalho".
A atitude, aparentemente contemplativa, é também questionadora. O ato de colocar-de em relação ao universo, como acontece na tela "As Rainhas da França" (presente na mostra atitude herdade dos olhar o universo

48 trabalhos no MAM-SP.
Kiefer é um dos mais importantes artistas da atualidade.
um dos responsáveis pela revitalização da pintura nos anos 80.
A partir do dia 2 de abril, Kiefer também será a estrela de uma individual com 13 obras na galeria Camargo Vilaça.
A mostra no MAM foi curada pelo crítico e curador do Centro Cultural de Arte Contemporâneo do México, Robert Littman.
técnica mista sobre tela e fotografia, esculturas da série "Mulheres da Revolução", xilogravuras e livros.
O trabalho de Kiefer é uma tentativa de reconciliação entre a humanidade, os mitos e as manifestações de poder em uma estância espiritualizada como a arte.
Kiefer praticamente constrói seus trabalhos, a partir do acúmulo de materiais como chumbo, barro, areia, palha, galhos, fios de cobre, sangue, palavras, sementes e fotografias.
O interesse pela pesquisa de materiais vem da influência do artista alemão Joseph Beuys (1921-1986), de quem foi aluno nos anos 70. Beuys lhe transferiu ainda seu interesse pela alquimia.
Para ele, a arte é uma forma espiritualizada de poder, que não coloca em risco a integridade do mundo e o afasta da catástrofe.
Essa catástrofe se manifesta ainda na utilização de figuras mitológicas relacionadas à tragédia humana em várias tradições, como a egípcia (Osíris e Ísis), a grega (Jasão), a judaica (Lilith), a alquímica, a cabalística e a religiosa.

Existe ainda na obra de Kiefer um desejo metafísico, pela necessidade de se restaurar uma unidade do ser humano com o cosmos, algo concebido divinamente, mas que se perdeu.
As paisagens de Kiefer são profundamente dramáticas, enraizadas na pintura romântica alemã, de paisagens sombrias e personagens solitários. Fazem remissão às telas de Caspar David Friedrich (1774-1840), em que, ao mirar o infinito, homens se deparam com a grandiosidade do universo e procuram seu lugar.


Folha - Ao contrário da maioria dos neo-expressionistas alemães, seus trabalhos são dominados pelo branco, negro e cinza. As cores nunca são protagonistas. São subliminares...
Kiefer -
Às vezes não são cores, mas pigmentos, como a terra, a areia, que são aplicados diretamente sobre a tela. Nesses casos não são cores, mas substâncias. A cor é uma ilusão. Se você coloca terra nun quadro, não se trata mais de uma ilusão, mas de uma realidade, uma realidade sobre a tela. Eu não sou um ilusionista.
Folha - Os países com os quais você trabalhou anteriormente, como o México, a Índia, o Egito, são países com uma cultura mitológica muito forte. Por que você se interessou por um país sem uma cultura forte, como o Brasil?
Kiefer -
O Brasil também tem a sua mitologia e tem também o catolicismo, que funciona como uma cultura.
Folha - Mas você se interessa por uma cultura como o catolicismo, que trabalha pouco com a metáfora e se pauta principalmente em dogmas?
Kiefer -
Com certeza o catolicismo que vem do Vaticano é dogmático, mas existe também uma cultura católica mais sincrética, como a que vi no México, que se mistura muito bem com os elementos que existiam previamente no país. Eu cheguei a ver em uma igreja uma missa em que o padre estava sozinho no altar, ninguém o olhava, mas no fundo os índios tinham seus objetos e plantas e faziam seu rito. E o padre continuava sozinho na frente. Achei extraordinário ver o padre rezando a missa para ele mesmo. Eles criaram uma religião própria, com uma mistura de elementos.
Folha - Vejo seus trabalhos como uma tentativa de restauração do valor dos mitos na vida cotidiana...
Kiefer -
Não é uma restauração do mito. Os mitos sempre estiveram presentes. Nós não podemos explicar o mundo cientificamente. Apenas uma parte mínima do mundo é explicada com a ciência. Alguns progressos são alcançados, mas atrás de cada progresso existe sempre um outro enigma.
Para ter um relacionamento total com o mundo, é preciso contar com os mitos. Eles são necessários para se criar um contexto com o mundo.
Os mitos estão por toda parte. Eles não estão apenas entre os artistas. Hoje até se abusa dos mitos. Toda a publicidade se utiliza de mitos, como o da juventude eternal, um mito que é muito usado. Meus trabalhos mantêmos mitos vivos.
Folha - Os mitos tornam a existência do homem mais suportável. Eles dão um senso à vida. Sua importância aumenta com a tragicidade do mundo?
Kiefer -
O mito é a possibilidade de se agir ativamente na vida, de não ser dirigido pelos políticos, burocratas ou pelas convenções. Ele permite que as pessoas ajam mais ativamentente e dêem seu próprio senso à sua vida. É preciso trabalhar com os mitos. Hoje, mais do que nunca, isso é necessário.
Folha - Em grande parte dos seus trabalhos e mesmo naqueles que você realizou para o Brasil, você trabalha com mitos negativos, como Lilith. Você é pessimista?
Kiefer -
De forma alguma. Trabalhar com personagens ambíguas como Lilith não é pessimismo. Lilith é ambígua. Ela se emancipou do homem, de Adão. Ela se recusou a ficar embaixo dele durante o ato sexual.
Lilith surgiu como um mito, mas depois a civilização começou a impor as histórias mais horríveis possíveis, como produzir 3.000 diabos todos os dias
Ela é um exemplo de como os mitos representam certas situações da sociedade e explicam algumas coisas. Ela foi a primeira a emancipar a mulher, e os homens, que criaram os mitos, a mostraram como um diabo.
Adão não sobreviveu como mito, mas Lilith sim, pois ela era ambígua e, por isso, mais interessante.
Folha - Você usa chumbo em muitos de seus trabalhos. Isso se deve unicamente ao seu valor na alquimia, como matéria inicial da transmutação?
Kiefer -
Na alquimia, o chumbo representa a primeira etapa na produção do ouro. É o elemento que inicia a transformação e a purificação. O chumbo é o mais pesado, opaco e denso, mas nele já é possível ver o início de uma sublimação. Isso me interessa.
Existem filósofos que dizem que o espírito está no alto e, às vezes, encontra a matéria. Eu digo que a matéria já conta com o espírito. Assim, olhando a matéria e se deixando inspirar pela matéria, fazemos filosofia, redescobrimos as coisas e encontramos o espírito. É uma teoria bem gnóstica.


Mostra: Anselm Kiefer (48 trabalhos) Técnica: técnica mista sobre tela e fotografias, esculturas, xilogravuras e livros Curadoria: Robert Littman Onde: MAM-SP (portão 3 do parque Ibirapuera, tel. 011/549-9688) Vernissage: quarta, às 19h Quando: terças, quartas e sextas, das 12h às 18h; quintas, das 12h às 22h; sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h. Até 24 de maio Quanto: R$ 2. Grátis às quintas e para menores de dez anos e maiores de 65 anos



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