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ARTES PLÁSTICAS
Anselm Kiefer constrói sua arte com mitos
CELSO FIORAVANTE
da Reportagem Local
O artista alemão Anselm Kiefer
chegou anteontem ao Brasil para a
inauguração de sua mostra, hoje,
no MAM-SP.
No caminho entre o aeroporto e
seu hotel, concedeu entrevista exclusiva à Folha. Perguntado se havia feito boa viagem, respondeu bem humorado: "Ótima. Vim vendo as estrelas. Esse é o meu trabalho".
A atitude, aparentemente contemplativa, é também questionadora. O ato de colocar-de em relação ao universo, como acontece na tela "As Rainhas da França" (presente na mostra atitude herdade dos olhar o universo
48 trabalhos no MAM-SP.
Kiefer é um dos mais importantes artistas da atualidade.
um dos responsáveis pela revitalização da pintura nos anos 80.
A partir do dia 2 de abril, Kiefer
também será a estrela de uma individual com 13 obras na galeria
Camargo Vilaça.
A mostra no MAM foi curada
pelo crítico e curador do Centro
Cultural de Arte Contemporâneo
do México, Robert Littman.
técnica
mista sobre tela e fotografia, esculturas da série "Mulheres da Revolução", xilogravuras e livros.
O trabalho de Kiefer é uma tentativa de reconciliação entre a humanidade, os mitos e as manifestações de poder em uma estância
espiritualizada como a arte.
Kiefer praticamente constrói
seus trabalhos, a partir do acúmulo de materiais como chumbo,
barro, areia, palha, galhos, fios de
cobre, sangue, palavras, sementes
e fotografias.
O interesse pela pesquisa de materiais vem da influência do artista
alemão Joseph Beuys (1921-1986),
de quem foi aluno nos anos 70.
Beuys lhe transferiu ainda seu interesse pela alquimia.
Para ele, a arte é uma forma espiritualizada de poder, que não coloca em risco a integridade do
mundo e o afasta da catástrofe.
Essa catástrofe se manifesta ainda na utilização de figuras mitológicas relacionadas à tragédia humana em várias tradições, como a
egípcia (Osíris e Ísis), a grega (Jasão), a judaica (Lilith), a alquímica, a cabalística e a religiosa.
Existe ainda na obra de Kiefer
um desejo metafísico, pela necessidade de se restaurar uma unidade do ser humano com o cosmos,
algo concebido divinamente, mas
que se perdeu.
As paisagens de Kiefer são profundamente dramáticas, enraizadas na pintura romântica alemã,
de paisagens sombrias e personagens solitários. Fazem remissão às
telas de Caspar David Friedrich
(1774-1840), em que, ao mirar o
infinito, homens se deparam com
a grandiosidade do universo e
procuram seu lugar.
Folha - Ao contrário da maioria
dos neo-expressionistas alemães,
seus trabalhos são dominados pelo branco, negro e cinza. As cores
nunca são protagonistas. São subliminares...
Kiefer - Às vezes não são cores,
mas pigmentos, como a terra, a
areia, que são aplicados diretamente sobre a tela. Nesses casos
não são cores, mas substâncias. A
cor é uma ilusão. Se você coloca
terra nun quadro, não se trata
mais de uma ilusão, mas de uma
realidade, uma realidade sobre a
tela. Eu não sou um ilusionista.
Folha - Os países com os quais
você trabalhou anteriormente, como o México, a Índia, o Egito, são
países com uma cultura mitológica
muito forte. Por que você se interessou por um país sem uma cultura forte, como o Brasil?
Kiefer - O Brasil também tem a
sua mitologia e tem também o catolicismo, que funciona como
uma cultura.
Folha - Mas você se interessa por
uma cultura como o catolicismo,
que trabalha pouco com a metáfora e se pauta principalmente em
dogmas?
Kiefer - Com certeza o catolicismo que vem do Vaticano é dogmático, mas existe também uma cultura católica mais sincrética, como
a que vi no México, que se mistura
muito bem com os elementos que
existiam previamente no país. Eu
cheguei a ver em uma igreja uma
missa em que o padre estava sozinho no altar, ninguém o olhava,
mas no fundo os índios tinham
seus objetos e plantas e faziam seu
rito. E o padre continuava sozinho
na frente. Achei extraordinário ver
o padre rezando a missa para ele
mesmo. Eles criaram uma religião
própria, com uma mistura de elementos.
Folha - Vejo seus trabalhos como
uma tentativa de restauração do
valor dos mitos na vida cotidiana...
Kiefer - Não é uma restauração
do mito. Os mitos sempre estiveram presentes. Nós não podemos
explicar o mundo cientificamente.
Apenas uma parte mínima do
mundo é explicada com a ciência.
Alguns progressos são alcançados,
mas atrás de cada progresso existe
sempre um outro enigma.
Para ter um relacionamento total
com o mundo, é preciso contar
com os mitos. Eles são necessários
para se criar um contexto com o
mundo.
Os mitos estão por toda parte.
Eles não estão apenas entre os artistas. Hoje até se abusa dos mitos.
Toda a publicidade se utiliza de
mitos, como o da juventude eternal, um mito que é muito usado.
Meus trabalhos mantêmos mitos
vivos.
Folha - Os mitos tornam a existência do homem mais suportável.
Eles dão um senso à vida. Sua importância aumenta com a tragicidade do mundo?
Kiefer - O mito é a possibilidade
de se agir ativamente na vida, de
não ser dirigido pelos políticos,
burocratas ou pelas convenções.
Ele permite que as pessoas ajam
mais ativamentente e dêem seu
próprio senso à sua vida. É preciso
trabalhar com os mitos. Hoje,
mais do que nunca, isso é necessário.
Folha - Em grande parte dos seus
trabalhos e mesmo naqueles que
você realizou para o Brasil, você
trabalha com mitos negativos, como Lilith. Você é pessimista?
Kiefer - De forma alguma. Trabalhar com personagens ambíguas
como Lilith não é pessimismo. Lilith é ambígua. Ela se emancipou
do homem, de Adão. Ela se recusou a ficar embaixo dele durante o
ato sexual.
Lilith surgiu como um mito, mas
depois a civilização começou a impor as histórias mais horríveis possíveis, como produzir 3.000 diabos
todos os dias
Ela é um exemplo de como os
mitos representam certas situações da sociedade e explicam algumas coisas. Ela foi a primeira a
emancipar a mulher, e os homens,
que criaram os mitos, a mostraram como um diabo.
Adão não sobreviveu como mito, mas Lilith sim, pois ela era ambígua e, por isso, mais interessante.
Folha - Você usa chumbo em
muitos de seus trabalhos. Isso se
deve unicamente ao seu valor na
alquimia, como matéria inicial da
transmutação?
Kiefer - Na alquimia, o chumbo
representa a primeira etapa na
produção do ouro. É o elemento
que inicia a transformação e a purificação. O chumbo é o mais pesado, opaco e denso, mas nele já é
possível ver o início de uma sublimação. Isso me interessa.
Existem filósofos que dizem que
o espírito está no alto e, às vezes,
encontra a matéria. Eu digo que a
matéria já conta com o espírito.
Assim, olhando a matéria e se deixando inspirar pela matéria, fazemos filosofia, redescobrimos as
coisas e encontramos o espírito. É
uma teoria bem gnóstica.
Mostra: Anselm Kiefer (48 trabalhos)
Técnica: técnica mista sobre tela e
fotografias, esculturas, xilogravuras e livros
Curadoria: Robert Littman
Onde: MAM-SP (portão 3 do parque
Ibirapuera, tel. 011/549-9688)
Vernissage: quarta, às 19h
Quando: terças, quartas e sextas, das 12h
às 18h; quintas, das 12h às 22h; sábados,
domingos e feriados, das 10h às 18h. Até
24 de maio
Quanto: R$ 2. Grátis às quintas e para
menores de dez anos e maiores de 65 anos
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