São Paulo, quarta-feira, 25 de abril de 2001

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"OS PARCEIROS..."

Manifestações culturais foram subvertidas na região paulista estudada por Candido

Modernidade põe caubói com sotaque no lugar do caipira

DO ENVIADO A BOFETE (SP)

Se uma parte do modo de vida antigo ficou preservada em hábitos alimentares e de rotina como os descritos por Zé da Lazinha, as manifestações culturais encontradas na região do interior de São Paulo estudada por Candido foram subvertidas por completo. "De uns 15 anos para cá, não tem mais festa", conta Seu Zé. Na época retratada em "Os Parceiros...", que leva por subtítulo "Estudo sobre o Caipira Paulista e a Transformação dos Seus Meios de Vida", as festas ocorriam uma vez por mês, em diferentes freguesias. Era o chamado "domingo de mês", diz Zé da Lazinha.
Agora, nem as tradicionais festas juninas de São Pedro, São João e Santo Antônio são celebradas.
Foram substituídas por outro tipo de reunião. No dia em que a Folha entrevistou Zé da Lazinha, o município de Bofete, que conta com 7.500 habitantes, completava 121 anos de existência independente. Naquela noite, em comemoração, se realizaria um grande rodeio, o 13º de uma série que começou em 1988.
O rodeio converteu-se no acontecimento mais aguardado do ano. Zé da Lazinha não vai assistir, mas os três filhos, de 16, 14 e 11 anos, participam com entusiasmo. A filha mais velha, Daniela, estudou até a 7ª série e agora mora em Bofete. O do meio, Daniel, está na 7ª e vai estudar informática. A pequena Daiane está na 4ª série. Eles não perdem um rodeio.
Copiado dos EUA, toda a embalagem que cerca o rodeio imita o estilo norte-americano. Das roupas às comidas, passando pela música inspirada no country, quase nada faz lembrar o Brasil.
A moda do rodeio corresponde a uma transformação importante na atividade econômica daquela zona. No passado, as fazendas e sítios dedicavam-se à agricultura. Hoje, as fazendas dão preferência à criação de gado, que ocupa 60% da extensa área municipal, e quase não utilizam mão-de-obra -uma das possíveis razões para o fim da parceria.
A lavoura, que antigamente chegou a prosperar com o café e o algodão, ficou restrita a cerca de 200 sitiantes que cultivam arroz, feijão e milho. Aqui e ali aparecem uns pés de café e um pouco de cana. Ouve-se falar de um último sítio que ainda produz garapa, antes um hábito disseminado, a ponto de substituir a água na hora de fazer o café.
Os sitiantes, como previu Antonio Candido, resistiram mais do que os parceiros, pelo próprio fato de serem donos da terra, à mudança das formas de produção. Entretanto não conseguiram deter, ao menos em Bofete, o avanço da nova cultura, representada pela união do boi com o caubói.
O secretário de Cultura e Turismo de Bofete, José Antônio Nicola, 29, conta que ao tentar a recuperação de uma dança "dos tempos antigos", o fandango, descobriu que havia uns tios seus que ainda sabiam os passos. "Só que não encontramos ninguém, em toda a área do município, que soubesse tocá-la na viola."
Zé da Lazinha confirma que o cururu, uma espécie de desafio, cujas transformações foram o foco inicial de interesse de Antonio Candido, desapareceu das festas locais, quando elas ainda existiam. "Ninguém mais sabia tocar o cururu", conta.
Ao ver uma das fotos inéditas feitas por Candido, incluídas na nova edição do livro, lembrou que Nhô Roque, outros dos parceiros estudados, sabia tocar a viola e fazer um títere mexer-se simultaneamente, como se dançasse. "O Edgard se divertia muito com isso", contou, referindo-se ao ex-proprietário da Bela Aliança e também professor da USP, Edgard Carone.
Zé da Lazinha não lamenta demais o fim das tradições. "Hoje em dia é melhor. Tem rádio e televisão. Antes, pobre não podia ter rádio." Na sala da casa de José, em frente ao aparelho de TV, há fotos da mãe, Lazinha, dos filhos... e do cantor Leandro. Zé da Lazinha, embora tenha cursado apenas até a 2ª série do ensino fundamental, lê com facilidade e afirma assistir ao "Jornal Nacional" toda noite.
A energia elétrica chegou à Bela Aliança em torno de 1972, conta o historiador Edgard Carone, "no contexto da campanha dos militares pela eletrificação rural". Com isso, apesar do isolamento em que vive -só vai à cidade uma vez por mês, a cavalo, para fazer compras-, o antigo parceiro está em contato com o mundo pela parabólica que mandou instalar ao lado da casa no começo dos anos 80.
Zé da Lazinha atribui grande valor aos avanços técnicos. "De primeiro, não tinha fogão a gás. Era muito ruim", explica. Mesmo que com eles tenham desaparecido costumes antigos, como o de comer pamonha nos dias de festa ou de fabricar pinga no próprio sítio.
Um aspecto, porém, não cedeu à passagem do tempo: o sotaque. Zé da Lazinha fala com uma entonação e uma diversidade verbal que fazem-no parecer um dos personagens de Guimarães Rosa, se "Grande Sertão: Veredas" transcorresse entre caipiras paulistas, e não jagunços mineiros.
Ao final da longa conversa, como a mostrar as conexões entre os sertões brasileiros, soltou um "ara, não sei não..." quando a Folha perguntou se ele sabia por onde andava outro dos personagens estudados por Candido.
O secretário Nicola, que dirigiu, com inconfundível dicção interiorana, o desfile pelo centro da cidade no domingo pela manhã das comitivas de cavaleiros que haviam participado do rodeio na noite anterior, acha, apesar de tudo, que o espírito caipira remanesce. "Está tudo no sotaque", diz. (ANDRÉ SINGER)


PERCURSOS DE UM SOCIÓLOGO - Exposição e relançamento do livro "Os Parceiros do Rio Bonito", de Antonio Candido. Onde: Centro Universitário Maria Antonia (r. Maria Antonia, 294, 1º andar, Vila Buarque). Quando: hoje, a partir das 18h30. Às 19h, mesa-redonda com os professores Maria Sylvia de Carvalho Franco, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Walnice Nogueira Galvão e José de Souza Martins. Quanto: grátis.



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