|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"OS PARCEIROS..."
Manifestações culturais foram subvertidas na região paulista estudada por Candido
Modernidade põe caubói com sotaque no lugar do caipira
DO ENVIADO A BOFETE (SP)
Se uma parte do modo de vida
antigo ficou preservada em hábitos alimentares e de rotina como
os descritos por Zé da Lazinha, as
manifestações culturais encontradas na região do interior de São
Paulo estudada por Candido foram subvertidas por completo.
"De uns 15 anos para cá, não tem
mais festa", conta Seu Zé. Na época retratada em "Os Parceiros...",
que leva por subtítulo "Estudo sobre o Caipira Paulista e a Transformação dos Seus Meios de Vida", as festas ocorriam uma vez
por mês, em diferentes freguesias.
Era o chamado "domingo de
mês", diz Zé da Lazinha.
Agora, nem as tradicionais festas juninas de São Pedro, São João
e Santo Antônio são celebradas.
Foram substituídas por outro tipo de reunião. No dia em que a
Folha entrevistou Zé da Lazinha,
o município de Bofete, que conta
com 7.500 habitantes, completava
121 anos de existência independente. Naquela noite, em comemoração, se realizaria um grande
rodeio, o 13º de uma série que começou em 1988.
O rodeio converteu-se no acontecimento mais aguardado do
ano. Zé da Lazinha não vai assistir, mas os três filhos, de 16, 14 e 11
anos, participam com entusiasmo. A filha mais velha, Daniela,
estudou até a 7ª série e agora mora
em Bofete. O do meio, Daniel, está
na 7ª e vai estudar informática. A
pequena Daiane está na 4ª série.
Eles não perdem um rodeio.
Copiado dos EUA, toda a embalagem que cerca o rodeio imita o
estilo norte-americano. Das roupas às comidas, passando pela
música inspirada no country,
quase nada faz lembrar o Brasil.
A moda do rodeio corresponde
a uma transformação importante
na atividade econômica daquela
zona. No passado, as fazendas e
sítios dedicavam-se à agricultura.
Hoje, as fazendas dão preferência
à criação de gado, que ocupa 60%
da extensa área municipal, e quase não utilizam mão-de-obra
-uma das possíveis razões para
o fim da parceria.
A lavoura, que antigamente
chegou a prosperar com o café e o
algodão, ficou restrita a cerca de
200 sitiantes que cultivam arroz,
feijão e milho. Aqui e ali aparecem
uns pés de café e um pouco de cana. Ouve-se falar de um último sítio que ainda produz garapa, antes um hábito disseminado, a
ponto de substituir a água na hora
de fazer o café.
Os sitiantes, como previu Antonio Candido, resistiram mais do
que os parceiros, pelo próprio fato de serem donos da terra, à mudança das formas de produção.
Entretanto não conseguiram deter, ao menos em Bofete, o avanço
da nova cultura, representada pela união do boi com o caubói.
O secretário de Cultura e Turismo de Bofete, José Antônio Nicola, 29, conta que ao tentar a recuperação de uma dança "dos tempos antigos", o fandango, descobriu que havia uns tios seus que
ainda sabiam os passos. "Só que
não encontramos ninguém, em
toda a área do município, que
soubesse tocá-la na viola."
Zé da Lazinha confirma que o
cururu, uma espécie de desafio,
cujas transformações foram o foco inicial de interesse de Antonio
Candido, desapareceu das festas
locais, quando elas ainda existiam. "Ninguém mais sabia tocar
o cururu", conta.
Ao ver uma das fotos inéditas
feitas por Candido, incluídas na
nova edição do livro, lembrou que
Nhô Roque, outros dos parceiros
estudados, sabia tocar a viola e fazer um títere mexer-se simultaneamente, como se dançasse. "O
Edgard se divertia muito com isso", contou, referindo-se ao ex-proprietário da Bela Aliança e
também professor da USP, Edgard Carone.
Zé da Lazinha não lamenta demais o fim das tradições. "Hoje
em dia é melhor. Tem rádio e televisão. Antes, pobre não podia ter
rádio." Na sala da casa de José, em
frente ao aparelho de TV, há fotos
da mãe, Lazinha, dos filhos... e do
cantor Leandro. Zé da Lazinha,
embora tenha cursado apenas até
a 2ª série do ensino fundamental,
lê com facilidade e afirma assistir
ao "Jornal Nacional" toda noite.
A energia elétrica chegou à Bela
Aliança em torno de 1972, conta o
historiador Edgard Carone, "no
contexto da campanha dos militares pela eletrificação rural".
Com isso, apesar do isolamento
em que vive -só vai à cidade
uma vez por mês, a cavalo, para
fazer compras-, o antigo parceiro está em contato com o mundo
pela parabólica que mandou instalar ao lado da casa no começo
dos anos 80.
Zé da Lazinha atribui grande valor aos avanços técnicos. "De primeiro, não tinha fogão a gás. Era
muito ruim", explica. Mesmo que
com eles tenham desaparecido
costumes antigos, como o de comer pamonha nos dias de festa ou
de fabricar pinga no próprio sítio.
Um aspecto, porém, não cedeu
à passagem do tempo: o sotaque.
Zé da Lazinha fala com uma entonação e uma diversidade verbal
que fazem-no parecer um dos
personagens de Guimarães Rosa,
se "Grande Sertão: Veredas"
transcorresse entre caipiras paulistas, e não jagunços mineiros.
Ao final da longa conversa, como a mostrar as conexões entre
os sertões brasileiros, soltou um
"ara, não sei não..." quando a Folha perguntou se ele sabia por onde andava outro dos personagens
estudados por Candido.
O secretário Nicola, que dirigiu,
com inconfundível dicção interiorana, o desfile pelo centro da
cidade no domingo pela manhã
das comitivas de cavaleiros que
haviam participado do rodeio na
noite anterior, acha, apesar de tudo, que o espírito caipira remanesce. "Está tudo no sotaque",
diz.
(ANDRÉ SINGER)
PERCURSOS DE UM SOCIÓLOGO
- Exposição e relançamento do livro "Os
Parceiros do Rio Bonito", de Antonio
Candido. Onde: Centro Universitário
Maria Antonia (r. Maria Antonia, 294, 1º
andar, Vila Buarque). Quando: hoje, a
partir das 18h30. Às 19h, mesa-redonda
com os professores Maria Sylvia de
Carvalho Franco, Maria Isaura Pereira de
Queiroz, Walnice Nogueira Galvão e José
de Souza Martins. Quanto: grátis.
Texto Anterior: A carne de vaca já não é mais tão malvada Próximo Texto: Música erudita: O Messias chegou, aleluia Índice
|