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MARCELO COELHO
"E, no entanto, se move"
O edifício teológico é delicado; mexer numa parte sua acarreta conseqüências em outra
DEPOIS DE longo debate teológico, o Vaticano chegou, na
semana passada, à conclusão
de que o limbo provavelmente não
existe. Era um conceito polêmico:
nem céu, nem inferno, nem purgatório, tratava-se do lugar sem sofrimento reservado às almas dos bebês
que não foram batizados.
A crença no limbo surgiu no século 13, mas nunca foi incorporada oficialmente ao catecismo. Sobrevivia,
sem trocadilho, numa espécie de
limbo teológico, agora finalmente
dissipado.
Sem manifestar nenhuma crença
pessoal na sua existência, eu achava
o limbo um conceito fascinante. Não
era o lugar dos santos nem dos grandes pecadores, nem mesmo da vasta
maioria de almas que fica entre uma
coisa e outra. Era o não-lugar, o ponto de interrogação suspenso entre a
vida e a morte eternas, como se o
próprio Deus, afinal, ficasse em dúvida diante do problema que tinha
nas mãos e suspendesse sua área de
jurisdição. Era o campo do neutro,
do indecidível, do nebuloso; o Vaticano preferiu afastá-lo das suas cogitações doutrinárias.
De fato, o limbo criava um impasse teológico, como diz a reportagem
da Folha do último sábado: "Por
um lado, é difícil aceitar que uma
criança possa ser condenada apenas por não ter sido libertada do
pecado original. Por outro, se a salvação vem mesmo sem o batismo,
por que batizar a criança?"
A resposta a essa pergunta, acho
eu, é relativamente simples. Deve-se batizar a criança o quanto antes,
na expectativa de que ela cresça,
peque, seja absolvida e termine se
salvando. Seria difícil imaginar que
alguém crescido, depois de inúmeros crimes, fosse livrar-se do inferno só por não ter sido batizado.
Mas havia outro problema, imagino, por trás dessa questão. É que
o inferno católico já não corresponde às velhas crenças dantescas
que o pintavam como um vasto pavilhão de torturas; o maior castigo
do pecador, diz o catolicismo, é
ver-se privado eternamente da
contemplação de Deus.
Só que, definido desse modo, o
inferno acaba se assemelhando perigosamente ao próprio limbo... E a
existência deste se torna mais duvidosa ainda. As crianças sem batismo iriam parar numa espécie de
inferno? O Vaticano concluiu que
não: "A exclusão de bebês inocentes do paraíso não parece refletir o
amor especial de Cristo pelos pequeninos".
Mas um edifício teológico é uma
construção delicada, e mexer numa parte da sua estrutura acarreta
conseqüências em outra. Como fica, diante dessa decisão, o pecado
original? Mesmo inocente, qualquer pessoa está marcada por essa
condição imperfeita; a falta de culpa individual não deixa de situar
cada ser humano num estado intermediário entre o pecado e a graça. Sendo assim, o limbo tinha a
sua lógica, ao reservar um lugar
eterno para aqueles que não pecaram, mas ainda não se salvaram.
Era, a bem dizer, o lugar de todo
ser humano em estado neutro: este
hesita, com efeito, entre a bondade
natural de Rousseau e a perversidade inata dos mais pessimistas.
Eis que o Vaticano assegura aos
não-batizados o paraíso. É uma atitude generosa, mas acredito intuir
as razões dessa decisão.
Discute-se internacionalmente a
pesquisa com células-tronco. Os
católicos rejeitam o uso de embriões humanos como matéria-prima para possíveis descobertas terapêuticas.
Trata-se, dizem, de preservar a
vida humana. Um zigoto, um embrião de duas semanas, já tem dentro de si um ser humano em potencial.
Interromper o seu desenvolvimento equivaleria, em tese, a matar um ser humano.
Neste caso, estava aberto o caminho para uma consideração extravagante. Será que todo embrião arriscado a cair nas mãos dos pesquisadores ou dos responsáveis por
uma clínica de aborto não deveria,
antes, receber o batismo, para não
terminar no limbo?
Uma campanha para batizar zigotos e embriões seria, de algum
modo, bizarra, para não dizer impraticável e ridícula. Ao eliminar
do horizonte o conceito de limbo, o
Vaticano certamente evita essa
conclusão extrema.
Talvez o conceito de pecado original sofra um pouco com isso; mas
a seu modo, e por vias sempre paradoxais e sibilinas, o catolicismo
tenta se adaptar aos novos tempos.
Cabe lembrar a lição de Galileu ao
ver negada pela Igreja a sua tese de
que a Terra se movia ao redor do
Sol. O Vaticano, sem sair do lugar
de sempre, "eppur si muove".
coelhofsp@uol.com.br
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