São Paulo, sexta-feira, 25 de junho de 2004

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CRÍTICA

Diretor põe verdade e mentira na balança

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Visto do ponto de vista estrito do conteúdo, "Do Outro Lado da Lei" é bastante simples (o que não não significa tolo). Lá existe Zapa, jovem simplório de uma pequena cidade que, vítima de uma armação, é preso.
Demonstrada sua inocência, ele vai para Buenos Aires, onde, graças a uma carta de recomendação, é aceito como aspirante a policial. Ele tem 32 anos, idade acima do permitido, por isso é preciso fazer uma adulteração e atribuir-lhe 28.
Isso é o primeiro sinal: ao longo do filme acompanharemos o deslizamento quase imperceptível de um justo à corrupção (aceitemos a palavra, mas é mais complexo).
Para Zapa a questão, no fim das contas, é individual: deve aceitar a ordem que sub-repticiamente se instala na corporação policial ou romper e ficar com a verdade?
É justamente pela palavra verdade que a questão do conteúdo perde importância e vem ao caso, para Pablo Trapero, colocar o próprio cinema em questão.
Digamos de início que Trapero trabalha nos limites de um estrito naturalismo. Desde o trabalho de ambientação até a belíssima direção de atores, tudo aqui aspira à transparência. Uma transparência moderna, no entanto -que desconfia de si mesma, assim como desconfia do cinema.
Pois, se o personagem oscila entre mentira e verdade, o que nos garante que o cinema esteja dizendo, a respeito dele ou da corporação policial, a verdade?
Essa é a angústia que o cinema de constituição naturalista deve suportar: nada pode ser garantia de sua verdade exceto o desencadeamento das imagens. Mas elas não nos garantem, em nada, uma verdade de conteúdo. Isto é, continuamos sem saber se é assim que as coisas acontecem nas polícias do mundo. Só sabemos que elas acontecem assim no filme. E a eficácia de "Do Outro Lado" vem de sua força ficcional -da forma como se articula esse deslizamento da honestidade à corrupção- bem mais do que da tentativa eventual de nos convencer de que "as coisas acontecem assim".
O espectador pode fazer uma comparação talvez proveitosa entre este filme e "As Invasões Bárbaras", de Denys Arcand.
Ao contrário de Trapero, Arcand busca nos seduzir primeiro pelo "grande tema" (a mentalidade dos anos 60), depois pela crença na capacidade do cinema de dizer a verdade sobre as coisas.
Não há em "As Invasões Bárbaras" essa distância angustiante que existe entre a imagem e a nossa recepção em "Do Outro Lado": como se algo se interpusesse entre elas para tornar nossa vida mais difícil. Mas é essa dificuldade que faz deste um filme vertiginoso, tanto quanto dois outros argentinos já exibidos aqui, "Pântano" e "Valentin". É na Argentina que está a vanguarda do continente.


Do Outro Lado da Lei
El Bonaerense
    
Direção: Pablo Trapero
Produção: Argentina/Chile/França/Holanda, 2002
Com: Jorge Román, Mimí Ardú
Quando: a partir de hoje no Cinearte, Cineclube DirecTV e Lumière



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