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CONTARDO CALLIGARIS
A feira dos remédios, em que uma certa psiquiatria vende sua alma
Algumas contas do Estado
de Massachusetts, EUA, publicadas no "Boston Globe" de
12/7, são indicativas de uma tendência que não é só americana:
na assistência médica oferecida
aos necessitados, o custo anual
dos remédios é de US$ 890 milhões, dos quais -surpresa-US$
470 milhões (53%) são gastos em
medicação psiquiátrica.
Certo, na população carente e
marginalizada, a porcentagem de
pessoas com sério sofrimento psíquico está sempre acima da média. Mas, nas contas, aparece
uma outra anomalia: a multiplicação dos remédios psiquiátricos
prescritos a um mesmo paciente.
Por exemplo, 5.000 pacientes tomam regularmente dois antidepressivos ou mais. Por que dois ou
mais? E como explicar que 1.100
pacientes estejam tomando simultaneamente mais de seis psicotrópicos?
Recentemente atendi um sujeito que tomava, há muito tempo,
11 remédios de quatro categorias:
antidepressivos, ansiolíticos, hipnóticos e antipsicóticos. Para efetuar um exame clínico, ou seja,
para descobrir quem estava atrás
de uma tal panóplia de drogas
que alteram humores e pensamentos, teria sido necessário um
processo de desintoxicação, com
meses de internação.
Como se chegou a essa desordem da medicação psiquiátrica?
1) A necessidade (ideológica e
econômica) de diminuir o tempo
das internações forçou os psiquiatras a inventar coquetéis para
substituir os muros do asilo: dois
antipsicóticos, um hipnótico, um
neuroléptico, um regulador do
humor, que mais?
2) Os remédios inventados nas
últimas décadas têm efeitos químicos definidos, mas seus efeitos
terapêuticos são variáveis: misteriosamente, eles funcionam com
algumas pessoas e não com outras, e cada paciente é sensível a
doses diferentes. A escolha dos remédios e a posologia são decisões
empíricas: "Prove este e vamos
ver se funciona, eventualmente a
gente aumenta a dose". "Diminua este e experimente o outro".
Quando muda a prescrição,
acrescentar é mais fácil que substituir: "Como fica, se eu tirar, e a
coisa piorar?".
3) Os médicos são informados
sobre os remédios pelos propagandistas das empresas, as quais
tentam estender o campo de ação
de seus produtos. "Doutor, nosso
antidepressivo não foi aprovado
para isso, mas parece que funciona também com crianças com déficit de atenção. Por que não prescrevê-lo em associação com a receita tradicional?"
4) Os remédios são promovidos
como produtos quaisquer: leio
numa revista que uma pílula poderia resolver minha fobia social,
ligo para meu médico e peço. Mas
não quero parar meu ansiolítico.
Se o resultado for positivo, como
saberei qual dos dois está funcionando? Continuarei com ambos.
Aquém dessa lista, há uma causa fundamental da proliferação
das prescrições. Até os anos 70, a
psiquiatria, tanto européia quanto americana, tentava entender
os sintomas psíquicos no quadro
da personalidade do paciente. Esperava-se que medos, pavores,
obsessões, compulsões e mesmo
francas loucuras revelassem seu
sentido como partes do conjunto
composto por um destino, um
ambiente e um sujeito. Curar significava, idealmente, reorganizar
tudo isso, de maneira que o resultado exigisse menos sofrimento
- tarefa frustrante por sua duração e dificuldade.
A partir dos anos 60, a indústria
farmacêutica começou a oferecer
remédios que podiam suprimir
quimicamente alguns sintomas
dolorosos. À primeira vista, excelente notícia: era possível acalmar
medos e angústias, soltar obsessões e inibir delírios, ganhando
tempo para que o paciente melhorasse o equilíbrio desfavorável
de sua vida e de seu mundo.
Mas uma parte da psiquiatria
não escolheu esse uso dos fármacos. Vendeu a alma: trocou a tradição clínica pela esperança de
fazer milagres. Essa psiquiatria
convenceu-se de que somos definidos pelos sintomas que os remédios curam. Para ela, não há
mais, por exemplo, neuróticos ou
psicóticos que podem se deprimir,
pois, se assim fosse, curar a depressão seria ótimo, mas deixaria
inteira a questão da personalidade de cada paciente. Para essa
psiquiatria, haveria, no caso, apenas deprimidos, ou seja, sujeitos
definidos pela depressão: de repente, a pílula que melhora o sintoma é tudo o que é preciso. O resultado é a bagunça indicada pelas contas de Massachusetts. Por
quê?
Imaginemos que, quando me
debruço na janela, eu me sinta irresistivelmente chamado por braços abertos que me esperam lá
embaixo, por amor ou por ódio,
não sei. Se uma pílula sortuda curasse meu medo das alturas, é
provável que passaria noites em
claro, de sentinela. Pois quem me
diz que os braços que antes me esperavam na calçada não são parentes dos braços de Morfeu? Posso acrescentar uma pílula. Dormirei. Mas o que é, agora, a estranha sensação de sufoco que me
encerra a garganta quando acordo, como uma espécie de gravata?
Acrescentarei uma terceira pílula? Talvez. Mas seria sábio, no entanto, tentar descobrir quem, desde sempre, me espera naquele
canto escuro, entre as floreiras e o
asfalto, embaixo de minha janela.
ccalligari@uol.com.br
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