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CRÍTICA
Filme mostra perplexidade do encontro entre diferentes culturas
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA
Q ue Ana Carolina filma muito bem, não resta dúvida,
nunca restou. O que fez seus filmes anteriores oscilarem da irregularidade ao francamente insuportável (caso de "Das Tripas Coração") talvez tenha sido a necessidade de exorcizar certos fantasmas, que lhe concerniam muito
mais do que aos espectadores.
Em outras palavras: Ana Carolina precisou afastar-se de si mesma, de sua mitologia pessoal, para
chegar a seu trabalho mais sólido.
Seu assunto: a passagem pelo Brasil, em 1905, da maior atriz do
mundo em seu tempo, Sarah Bernhardt (Béatrice Agenin).
Como se sabe, essa passagem foi
literalmente um desastre. A diva
quebrou a perna, mais tarde amputada, depois de saltar de um
praticável. As almofadas que deveriam amortecer sua queda não
estavam onde deveriam estar. É
até hoje uma das maiores vergonhas simbólicas do país.
Ana Carolina não toma o episódio como motivo de autoflagelação. O real tema de "Amélia" será
o impossível encontro entre duas
culturas -tomando o cuidado de
explicitar que a palavra exotismo
tem duas mãos.
A trama, muito original, diz respeito a uma imaginária camareira
brasileira de Bernhardt, Amélia
(Marília Pêra), cujas irmãs, Francisca (Miriam Muniz) e Oswalda
(Camila Amado), além da agregada Maria Luiza (Alice Borges), vivem no interior de Minas Gerais.
Sabendo da chegada de Amélia,
as três vêm ao Rio. Mas uma catástrofe acontece. Na Argentina,
Amélia adoece e morre. Com isso,
as três matutas se vêm no Rio sem
compreender os costumes da cidade grande e muito menos da
gente de teatro.
A falta de comunicação, no Brasil, não é um fenômeno metafísico. Ele separa o Rio dos fanáticos
de Canudos, na fundação da República, assim como hoje separa,
nas grandes cidades, a madame
que vai em seu carro e o cheirador
de cola que a rouba, por exemplo.
Essa incapacidade de aproximar maneiras de sentir e estados
sociais distantes, quando não
opostos, tem quebrado a cabeça
de governantes e teóricos e faz
com que voltemos sempre ao
mesmo tópico: que nação é essa?
Essa indagação nos é tão familiar que por vezes esquecemos sua
existência. Mas ela de algum modo está lá, persistente, desafiadora. Em "Amélia", Ana Carolina
consegue instaurar plenamente
essa perplexidade, como na cena
em que as três matutas chegam a
um hotel de luxo, trazendo uma
estranha carga, da qual consta um
porco e um urinol.
Por vezes o filme beira a autoflagelação, como na cena do cortejo
liderado por Bernhardt que atravessa a cidade ao som do Hino
Nacional. Essa tendência demagógica a desfazer dos emblemas
da nação e, por tabela, da própria,
é, felizmente, rara em "Amélia".
E não é aí que se encontra a ênfase do filme, mas no desentendimento que envolve os participantes da trama. É isso que faz de
"Amélia" uma comédia de erros
diante dos quais poucas vezes nos
resignamos a rir. Tudo é trágico.
"Amélia" tem, no mais, um vigor típico dos filmes produzidos
no Brasil na primeira metade da
década -o que a ajuda a esquecer o que tem de reiterativo, às vezes, e de dispersivo, outras tantas
(como as alusões à vida sexual de
mme. Bernhardt, que em definitivo não vêm ao caso).
O filme foi produzido graças ao
Prêmio Resgate. Sinal de que,
com todas as injustiças que comissões de seleção podem cometer, elas ainda têm mais critério do
que o "mercado".
Avaliação:
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