São Paulo, sexta-feira, 25 de agosto de 2000


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CRÍTICA
Filme mostra perplexidade do encontro entre diferentes culturas

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Q ue Ana Carolina filma muito bem, não resta dúvida, nunca restou. O que fez seus filmes anteriores oscilarem da irregularidade ao francamente insuportável (caso de "Das Tripas Coração") talvez tenha sido a necessidade de exorcizar certos fantasmas, que lhe concerniam muito mais do que aos espectadores.
Em outras palavras: Ana Carolina precisou afastar-se de si mesma, de sua mitologia pessoal, para chegar a seu trabalho mais sólido. Seu assunto: a passagem pelo Brasil, em 1905, da maior atriz do mundo em seu tempo, Sarah Bernhardt (Béatrice Agenin).
Como se sabe, essa passagem foi literalmente um desastre. A diva quebrou a perna, mais tarde amputada, depois de saltar de um praticável. As almofadas que deveriam amortecer sua queda não estavam onde deveriam estar. É até hoje uma das maiores vergonhas simbólicas do país.
Ana Carolina não toma o episódio como motivo de autoflagelação. O real tema de "Amélia" será o impossível encontro entre duas culturas -tomando o cuidado de explicitar que a palavra exotismo tem duas mãos.
A trama, muito original, diz respeito a uma imaginária camareira brasileira de Bernhardt, Amélia (Marília Pêra), cujas irmãs, Francisca (Miriam Muniz) e Oswalda (Camila Amado), além da agregada Maria Luiza (Alice Borges), vivem no interior de Minas Gerais.
Sabendo da chegada de Amélia, as três vêm ao Rio. Mas uma catástrofe acontece. Na Argentina, Amélia adoece e morre. Com isso, as três matutas se vêm no Rio sem compreender os costumes da cidade grande e muito menos da gente de teatro.
A falta de comunicação, no Brasil, não é um fenômeno metafísico. Ele separa o Rio dos fanáticos de Canudos, na fundação da República, assim como hoje separa, nas grandes cidades, a madame que vai em seu carro e o cheirador de cola que a rouba, por exemplo.
Essa incapacidade de aproximar maneiras de sentir e estados sociais distantes, quando não opostos, tem quebrado a cabeça de governantes e teóricos e faz com que voltemos sempre ao mesmo tópico: que nação é essa?
Essa indagação nos é tão familiar que por vezes esquecemos sua existência. Mas ela de algum modo está lá, persistente, desafiadora. Em "Amélia", Ana Carolina consegue instaurar plenamente essa perplexidade, como na cena em que as três matutas chegam a um hotel de luxo, trazendo uma estranha carga, da qual consta um porco e um urinol.
Por vezes o filme beira a autoflagelação, como na cena do cortejo liderado por Bernhardt que atravessa a cidade ao som do Hino Nacional. Essa tendência demagógica a desfazer dos emblemas da nação e, por tabela, da própria, é, felizmente, rara em "Amélia".
E não é aí que se encontra a ênfase do filme, mas no desentendimento que envolve os participantes da trama. É isso que faz de "Amélia" uma comédia de erros diante dos quais poucas vezes nos resignamos a rir. Tudo é trágico.
"Amélia" tem, no mais, um vigor típico dos filmes produzidos no Brasil na primeira metade da década -o que a ajuda a esquecer o que tem de reiterativo, às vezes, e de dispersivo, outras tantas (como as alusões à vida sexual de mme. Bernhardt, que em definitivo não vêm ao caso).
O filme foi produzido graças ao Prêmio Resgate. Sinal de que, com todas as injustiças que comissões de seleção podem cometer, elas ainda têm mais critério do que o "mercado".


Avaliação:     


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