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ANÁLISE
Não domestiquemos sua rebeldia
OSWALDO GIACOIA JUNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA
C em anos depois de sua morte, não cessamos de nos perguntar pela atualidade de Nietzsche. Quais são as razões pelas
quais um pensador que viveu nos
primórdios da Revolução Industrial pode ainda ainda ser relevante num tempo em que a tecno-ciência nos coloca em condições
de transpor distâncias galácticas,
de submeter a natureza interna e
externa, de decifrar os códigos genéticos do que até hoje se entendeu como o enigma da criação?
Muitos buscaram uma explicação para esse mistério no drama
de sua existência pessoal. Afinal, a
fatalidade de sua vida nos mergulha, com uma crueza inaudita, nos
abismos da mente humana, destacando a fragilidade da fronteira
que separa a meridiana clareza da
plena lucidez das sombras fatais
da loucura. O colapso do homem
Nietzsche seria, pois, a ilustração
da tragédia do pensador; e isso explicaria o fascínio que Nietzsche,
o poeta da embriaguez dionisíaca,
encarnou desde sua morte.
Penso, porém, que o impacto da
filosofia de Nietzsche advém de
sua extraordinária clarividência.
Ele pressentiu, em estado de gestação, as ameaças mais fatais de
nosso tempo. Anteviu o panorama sombrio que poderia advir do
projeto sociopolítico de uma sociedade de massas. Nietzsche profetizou que a sociedade ocidental
caminhava, desde então, para um
nivelamento por baixo.
Por isso, Nietzsche foi um crítico da banalização da vida. Sua filosofia consiste num apelo à reconquista da autenticidade perdida. Se em algo ele reivindica ser
mestre, então apenas no exigir de
seus discípulos que saibam encontrar o caminho para si mesmos. Daí sua aversão à impessoalidade, ao conformismo que renuncia às aspirações próprias
mais genuínas, seu repúdio à rendição às unanimidades.
Nietzsche nunca ocultou seu
"não" intransigente à transformação do espírito em mercadoria, à
conversão da arte em diversão
inócua e consumo massivo. Ao
contrário dos que optavam pelas
ilusões consoladoras, embalados
pela crença num progresso infinito do gênero humano, preferiu
sempre o olhar corajoso para as
misérias de nossa condição finita.
Para ele, só no reconhecimento
franco de nossos limites e "idiotismos" é que se abriga a possível
auto-superação.
Por isso, muitos o caluniaram
como inimigo das causas socialistas, detrator da igualdade, adversário da democracia. Outros o
acusaram também de ser um aristocrata reacionário, saudosista da
glória e do heroísmo passado.
E, no entanto, é justamente o
contrário disso que constitui a
grande contribuição de Nietzsche: ter discernido com sobre-humana clareza para onde nos conduziam as "verdadeiras tendências" da realidade que, em seu
tempo, apenas se anunciavam. E
não somente discerni-las, mas
trazê-las sem disfarces e lantejoulas, sem piedade e edulcorações.
Nietzsche se considerou sempre
um extemporâneo; sua filosofia se
destinava ao futuro. É hoje, portanto, no limiar do terceiro milênio, num tempo em que o ser humano começa a se transformar
perigosamente na "mais valiosa
matéria prima" para a produção e
consumo tecnológico da vida, que
o impulso de Nietzsche se torna
audível e presente. Tudo o que devemos fazer é não tentar domesticar a rebeldia de Nietzsche.
Oswaldo Giacoia Junior é professor de
filosofia na Unicamp e autor de "Folha
Explica: Nietzsche" (Publifolha)
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