São Paulo, sexta-feira, 25 de agosto de 2000


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ANÁLISE
Não domestiquemos sua rebeldia

OSWALDO GIACOIA JUNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

C em anos depois de sua morte, não cessamos de nos perguntar pela atualidade de Nietzsche. Quais são as razões pelas quais um pensador que viveu nos primórdios da Revolução Industrial pode ainda ainda ser relevante num tempo em que a tecno-ciência nos coloca em condições de transpor distâncias galácticas, de submeter a natureza interna e externa, de decifrar os códigos genéticos do que até hoje se entendeu como o enigma da criação?
Muitos buscaram uma explicação para esse mistério no drama de sua existência pessoal. Afinal, a fatalidade de sua vida nos mergulha, com uma crueza inaudita, nos abismos da mente humana, destacando a fragilidade da fronteira que separa a meridiana clareza da plena lucidez das sombras fatais da loucura. O colapso do homem Nietzsche seria, pois, a ilustração da tragédia do pensador; e isso explicaria o fascínio que Nietzsche, o poeta da embriaguez dionisíaca, encarnou desde sua morte.
Penso, porém, que o impacto da filosofia de Nietzsche advém de sua extraordinária clarividência. Ele pressentiu, em estado de gestação, as ameaças mais fatais de nosso tempo. Anteviu o panorama sombrio que poderia advir do projeto sociopolítico de uma sociedade de massas. Nietzsche profetizou que a sociedade ocidental caminhava, desde então, para um nivelamento por baixo.
Por isso, Nietzsche foi um crítico da banalização da vida. Sua filosofia consiste num apelo à reconquista da autenticidade perdida. Se em algo ele reivindica ser mestre, então apenas no exigir de seus discípulos que saibam encontrar o caminho para si mesmos. Daí sua aversão à impessoalidade, ao conformismo que renuncia às aspirações próprias mais genuínas, seu repúdio à rendição às unanimidades.
Nietzsche nunca ocultou seu "não" intransigente à transformação do espírito em mercadoria, à conversão da arte em diversão inócua e consumo massivo. Ao contrário dos que optavam pelas ilusões consoladoras, embalados pela crença num progresso infinito do gênero humano, preferiu sempre o olhar corajoso para as misérias de nossa condição finita. Para ele, só no reconhecimento franco de nossos limites e "idiotismos" é que se abriga a possível auto-superação.
Por isso, muitos o caluniaram como inimigo das causas socialistas, detrator da igualdade, adversário da democracia. Outros o acusaram também de ser um aristocrata reacionário, saudosista da glória e do heroísmo passado.
E, no entanto, é justamente o contrário disso que constitui a grande contribuição de Nietzsche: ter discernido com sobre-humana clareza para onde nos conduziam as "verdadeiras tendências" da realidade que, em seu tempo, apenas se anunciavam. E não somente discerni-las, mas trazê-las sem disfarces e lantejoulas, sem piedade e edulcorações.
Nietzsche se considerou sempre um extemporâneo; sua filosofia se destinava ao futuro. É hoje, portanto, no limiar do terceiro milênio, num tempo em que o ser humano começa a se transformar perigosamente na "mais valiosa matéria prima" para a produção e consumo tecnológico da vida, que o impulso de Nietzsche se torna audível e presente. Tudo o que devemos fazer é não tentar domesticar a rebeldia de Nietzsche.


Oswaldo Giacoia Junior é professor de filosofia na Unicamp e autor de "Folha Explica: Nietzsche" (Publifolha)


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