São Paulo, sexta-feira, 25 de agosto de 2000


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CARLOS HEITOR CONY
Dois espaços para o mesmo tempo da memória

Um disco gira na vitrola. Era num tempo em que existiam vitrolas, os discos ainda eram bolachões negros e brilhantes, o som, bem, o som era o que se podia esperar de agulhas decrépitas e rombudas.
Não importava: ou melhor, todos se importavam apenas com a música que saía do disco e da vitrola, somente isso, alta-fidelidade era coisa para mulher casada, bastava o disco girar no prato e vinha a voz de Lena Horne ou de Aznavour, às vezes não vinha voz alguma, mas o som metálico de Harry James ou o sopro macio de Tommy Dorsey.
Por acaso, ou por evidente propósito que nunca se admite, o disco girava na vitrola, e vinha aquela música que não chegava a ser antiga nem recente. Apesar do muito tempo em que fora lançada, pertencia ao gênero "música de sempre": ""You must remember this..."
Ele estava sozinho, sozinho na sala que dava para a varanda, varanda que dava para a noite, noite que dava para o mundo. Era, na realidade, o seu primeiro instante de solidão depois de tudo o que lhe acontecera: a separação não fora tão dolorosa assim, ele e ela eram civilizados e ainda se amavam o bastante para o respeito mútuo. Depois, as pequeninas providências que foram obrigados a tomar, quem leva aquele Volpi? Com quem fica a geladeira? E aquele anjinho de madeira que trouxemos de Florença?
Enfim, eram coisas insignificantes para cada um: só tinham valor porque e quando estavam juntos. Na verdade, ele até preferiria que ela levasse tudo, desejava ficar livre de todos aqueles fantasmas que agora o afogavam. Mas tinha de ser correto até o fim, e cada um ficou com uma parte: no fundo, era uma forma de continuarem juntos.
E depois de todas as providências, depois de tudo arrumado e novamente serenado -dentro e fora de cada um-, eis que chegava aquela noite -a primeira. A noite que ele podia considerar a primeira de sua nova vida, ou melhor, da sua vida de sempre.
""You must remember this..." A música lembrava um filme que nunca chegaram a ver juntos. Tanto ele como ela não gostavam de "Casablanca", ele detestava especialmente Humprey Boggart, ela achava Ingrid Bergman um pouco machona, mas ambos já haviam visto e revisto o filme, antes de se encontrarem.
Contudo a música ficara como uma senha: no hall daquele pequenino hotel, em Atenas, eles chegaram tarde, não havia ninguém na portaria. Um negro (tal como no filme) tocava aquela música para um casal de holandeses perdido numa excursão pelas ilhas do Egeu. Ele teve de interromper o pianista -que por sinal era o próprio porteiro da noite. Assinaram as fichas e subiram levando as duas pequeninas malas para o quarto. O porteiro-pianista voltou ao piano e continuou: ""The fundamental things as time goes by...".
Naquela noite -a primeira noite sob o céu aveludado da Grécia, a silhueta de mármore destacada no alto da Acrópole-, ela teve a crise de choro nos ombros dele. Depois, o amor foi lento, minucioso, tão lento e minucioso que amanheceu de repente. Pior: amanheceu para sempre -e eles nunca teriam momento igual. Depois anoiteceu outra vez, e tudo se consumou. Ela ficou com o Volpi, ele com o anjinho de Florença. Pouco importa: sozinho, diante da varanda e da noite, um disco gira na vitrola.
A mesma vitrola que ele trocou por um aparelho de som que lhe garantiram ser a ponta do mercado em matéria de som. Teve de se desfazer de suas velhas bolachas, seus vinis com capas tão anos 50 e 60, passou grande parte delas para fitas e CDs, mas não eram a mesma coisa, faltava história naqueles carretéis, naqueles discos metálicos e brilhantes. As próprias músicas não pareciam as mesmas.
Mas havia uma exceção que justificava a parafernália tecnológica e escura que entupiu sua sala. Um cassete já meio arrombado, dos mais primitivos, a fita arrebentara diversas vezes e fora colada por um técnico que, estranhamente, chamava-se Abigail, nome unissex, jamais conhecera um Abigail, mas sabia da existência de uma Abigail que dava plantão num daqueles dancings do final da avenida, quase em frente ao velho Senado.
Apesar dos trancos e barrancos daquela fita, era a única que ele ouvia com emoção, no final de cada noite solitária. Não tinha nada demais, as músicas eram batidas, um tango antigo (""Uno") na voz de Libertad Lamarque, um velho foxe do qual ele esquecera o nome e o autor, coisas assim.
Mas havia um fiapo, um tranco especial entre duas músicas. Lembrava o instante com nitidez. Ao gravar aquela fita, mexeu no gravador e por dois, três segundos, apareceu a voz dela, dizendo com resignação: "Está bem, está bem...".
Tudo estava bem. O problema com o gravador foi corrigido, a voz de Alberto Rabagliatti entrou no meio da canção que ela preferia, ""veneno, se me beijas te dou o meu veneno" -em italiano é menos cafona, mas letal do mesmo jeito, quando a dimensão é a memória e o gosto parece desejo.


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