|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Dois espaços para o mesmo tempo da memória
Um disco gira na vitrola.
Era num tempo em que
existiam vitrolas, os discos ainda
eram bolachões negros e brilhantes, o som, bem, o som era o que se
podia esperar de agulhas decrépitas e rombudas.
Não importava: ou melhor, todos se importavam apenas com a
música que saía do disco e da vitrola, somente isso, alta-fidelidade era coisa para mulher casada,
bastava o disco girar no prato e
vinha a voz de Lena Horne ou de
Aznavour, às vezes não vinha voz
alguma, mas o som metálico de
Harry James ou o sopro macio de
Tommy Dorsey.
Por acaso, ou por evidente propósito que nunca se admite, o disco girava na vitrola, e vinha
aquela música que não chegava a
ser antiga nem recente. Apesar do
muito tempo em que fora lançada, pertencia ao gênero "música
de sempre": ""You must remember
this..."
Ele estava sozinho, sozinho na
sala que dava para a varanda,
varanda que dava para a noite,
noite que dava para o mundo.
Era, na realidade, o seu primeiro
instante de solidão depois de tudo
o que lhe acontecera: a separação
não fora tão dolorosa assim, ele e
ela eram civilizados e ainda se
amavam o bastante para o respeito mútuo. Depois, as pequeninas providências que foram obrigados a tomar, quem leva aquele
Volpi? Com quem fica a geladeira? E aquele anjinho de madeira
que trouxemos de Florença?
Enfim, eram coisas insignificantes para cada um: só tinham
valor porque e quando estavam
juntos. Na verdade, ele até preferiria que ela levasse tudo, desejava ficar livre de todos aqueles fantasmas que agora o afogavam.
Mas tinha de ser correto até o fim,
e cada um ficou com uma parte:
no fundo, era uma forma de continuarem juntos.
E depois de todas as providências, depois de tudo arrumado e
novamente serenado -dentro e
fora de cada um-, eis que chegava aquela noite -a primeira. A
noite que ele podia considerar a
primeira de sua nova vida, ou
melhor, da sua vida de sempre.
""You must remember this..." A
música lembrava um filme que
nunca chegaram a ver juntos.
Tanto ele como ela não gostavam
de "Casablanca", ele detestava especialmente Humprey Boggart,
ela achava Ingrid Bergman um
pouco machona, mas ambos já
haviam visto e revisto o filme, antes de se encontrarem.
Contudo a música ficara como
uma senha: no hall daquele pequenino hotel, em Atenas, eles
chegaram tarde, não havia ninguém na portaria. Um negro (tal
como no filme) tocava aquela
música para um casal de holandeses perdido numa excursão pelas ilhas do Egeu. Ele teve de interromper o pianista -que por
sinal era o próprio porteiro da
noite. Assinaram as fichas e subiram levando as duas pequeninas
malas para o quarto. O porteiro-pianista voltou ao piano e continuou: ""The fundamental things
as time goes by...".
Naquela noite -a primeira
noite sob o céu aveludado da Grécia, a silhueta de mármore destacada no alto da Acrópole-, ela
teve a crise de choro nos ombros
dele. Depois, o amor foi lento, minucioso, tão lento e minucioso
que amanheceu de repente. Pior:
amanheceu para sempre -e eles
nunca teriam momento igual.
Depois anoiteceu outra vez, e tudo se consumou. Ela ficou com o
Volpi, ele com o anjinho de Florença. Pouco importa: sozinho,
diante da varanda e da noite, um
disco gira na vitrola.
A mesma vitrola que ele trocou
por um aparelho de som que lhe
garantiram ser a ponta do mercado em matéria de som. Teve de se
desfazer de suas velhas bolachas,
seus vinis com capas tão anos 50 e
60, passou grande parte delas para fitas e CDs, mas não eram a
mesma coisa, faltava história naqueles carretéis, naqueles discos
metálicos e brilhantes. As próprias músicas não pareciam as
mesmas.
Mas havia uma exceção que
justificava a parafernália tecnológica e escura que entupiu sua
sala. Um cassete já meio arrombado, dos mais primitivos, a fita
arrebentara diversas vezes e fora
colada por um técnico que, estranhamente, chamava-se Abigail,
nome unissex, jamais conhecera
um Abigail, mas sabia da existência de uma Abigail que dava
plantão num daqueles dancings
do final da avenida, quase em
frente ao velho Senado.
Apesar dos trancos e barrancos
daquela fita, era a única que ele
ouvia com emoção, no final de cada noite solitária. Não tinha nada demais, as músicas eram batidas, um tango antigo (""Uno") na
voz de Libertad Lamarque, um
velho foxe do qual ele esquecera o
nome e o autor, coisas assim.
Mas havia um fiapo, um tranco
especial entre duas músicas. Lembrava o instante com nitidez. Ao
gravar aquela fita, mexeu no gravador e por dois, três segundos,
apareceu a voz dela, dizendo com
resignação: "Está bem, está
bem...".
Tudo estava bem. O problema
com o gravador foi corrigido, a
voz de Alberto Rabagliatti entrou
no meio da canção que ela preferia, ""veneno, se me beijas te dou o
meu veneno" -em italiano é menos cafona, mas letal do mesmo
jeito, quando a dimensão é a memória e o gosto parece desejo.
Texto Anterior: Noite Ilustrada - Erika Palomino: Culto ao DJ é bom e a gente gosta Próximo Texto: Panorâmicas: Grupo SS e Oficina terão novo encontro Índice
|