São Paulo, sexta-feira, 25 de agosto de 2006

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Crítica/"O Tempo que Resta"

François Ozon faz um dos filmes mais belos do ano

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Ao ser criado, o cinema suplantou as tradicionais artes da representação (pintura, escultura e fotografia) ao capturar o movimento das pessoas, objetos e paisagens e assim avançar na reprodução realista do mundo. Junto do movimento, veio o tempo e, com ele, a idéia de que tudo se constrói mas também se destrói. Mais de cem anos depois, essa metafísica do tempo continua a dar belos frutos. Nas mãos de François Ozon, a indagação sobre seus efeitos transforma-se em um dos mais belos filmes do ano.
Sintético na duração (85 minutos), "O Tempo que Resta" narra o período na vida de um fotógrafo de moda arrogante quando descobre que sofre de um câncer letal e que terá poucos meses de vida. Como a personagem de "Cleo de 5 às 7", de Agnès Varda, a má notícia impõe, mais que uma súbita revisão dos valores da personagem, uma alteração em seu mundo e em sua visão de mundo.
Cineasta irregular, Ozon tem o costume de partir de premissas estimulantes de roteiro, mas se perder em demonstrações, como em "Swimming Pool", cuja excelência psicológica da primeira hora é desperdiçada em seguida. Ao contrário, "O Tempo que Resta" é um filme que cresce à medida que o personagem entra num beco sem saída. Sua psicologia, esboçada nas primeiras cenas, ganha em profundidade na razão dos encontros e desencontros que a presença da morte impõe. É assim que "O Tempo" evolui de mera reflexão existencialista para retomar outro tema freqüente em Ozon: o amor e suas razões.

Depuração
Pois é sob o signo do fim, mais uma vez, que o diretor retoma sua obsessão sobre a degradação dos sentimentos, exposto aqui na figura do amante, mas, sobretudo, na dimensão da família (pais, irmã e avó, presente na imagem sublime de Jeanne Moreau velha).
Não há ênfase no martírio nem romantização do personagem, pois o filme evolui como um processo quase abstrato de depuração das emoções. A dor avança gradualmente até alcançar um patamar de beleza que o diretor mantém sem recorrer a cacoetes de estilo. Em contraponto, predomina uma paixão física no filme, conduzida pela presença magnética de Melvil Poupaud, protagonista. Por meio dele, o corpo alcança o status do visível, forma essencial da representação no cinema. Trata-se de um corpo que sofre e no qual o espectador sente as forças minguarem.
Há, porém, ali uma vitalidade encarnada sob essa forma de transmissão mais conhecida de todas, esse intangível que denominamos amor.
Tanto a morte como o amor passam pelo corpo e é este que torna essas duas vivências visíveis, e tangíveis, no filme. Graças a essa atenção aos corpos, Ozon oferece uma das mais belas cenas de sexo do cinema, um "ménage-à-trois" filmado com uma sobriedade e um erotismo que produzem um enorme impacto no espectador.
Naquele momento, em que a morte se transforma em vida, em que o amor atua como a força que reúne, Ozon abandona sua concepção niilista e executa um hino ao tempo como o grande enigma que tudo move.


O TEMPO QUE RESTA     
Direção: François Ozon
Produção: França, 2005
Com: Melvil Poupaud, Jeanne Moreau
Quando: em cartaz nos cines Espaço Unibanco e Unibanco Arteplex


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