São Paulo, sábado, 25 de agosto de 2007

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Análise/poesia

Obra de João Cabral de Melo Neto começa a ser relançada

"O Cão sem Plumas" e "O Artista Inconfessável" revelam traços marcantes do poeta

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA

João Cabral de Melo Neto (1920-1999) tornou-se muito cedo o poeta homônimo. Já entre seus primeiros livros se entreviam claros os recursos poéticos e as preocupações temáticas que o seguiriam, sem alterações, vida afora. Definidos e consolidados quando o poeta estava na casa dos 20, eles o caracterizariam até morrer, quase octogenário.
É possível mesmo dizer deste poeta, tão amado pelas vanguardas e tantas vezes rotulado como inovador, que, se há algo que ele praticamente nunca fez, foi se renovar, dar uma guinada qualquer, escrever poemas diferentes daqueles que, sendo sua marca registrada, eram também inconfundíveis.
Os temas que o pernambucano escolheu para si (ou, como ele talvez observasse, aqueles que o escolheram), a árida paisagem natal e outras tantas similares (o sul da Espanha, o Sahel africano), a secura e a penúria do ambiente que lhe reduz os habitantes a um estado praticamente mineral, a fauna dessa natureza empobrecida e a morte onipresente, seja pela simples obsessão com que o autor retornava a eles sem cessar, seja pela metódica insistência com que combinava e recombinava sua própria escassez, transcenderam, no que nos legou, o temático e se converteram na metáfora patente de seu estilo. Em Cabral, mais do que em qualquer outro contemporâneo, o estilo era, sem tirar nem pôr, o homem.
Começando a republicar sua obra livro por livro, a Alfaguara permitirá que novos leitores emulem a experiência dos que, uma ou duas gerações antes, lhe acompanharam, com prazer, a carreira. O volume inicial da série, "O Cão sem Plumas e Outros Poemas", contém, entre outras coisas, seus primeiros poemas e seu livro de estréia, "Pedra do Sono" (1940-41) com textos cujo mérito é o de, retrospectivamente, revelar alguns de seus traços permanentes aos admiradores de sua poesia posterior. Os poemas seguintes, publicados originalmente na coletânea "O Engenheiro", já se mostram mais seguros e pessoais.
O cerne deste livro, porém, é duplo. De um lado estão os poemas programáticos nos quais Cabral diz em alto e bom som a que veio: "Psicologia da Composição" e "Antiode", texto fundamental que, já na abertura ("Poesia, te escrevia:/ flor! Conhecendo/ que és fezes./ Fezes/ como qualquer,"), declara guerra ao lirismo decorativo ou, na expressão de Manuel Bandeira, "comedido", bem como à linguagem e ao vocabulário restrito (menos por economia que por pudor) de seus contemporâneos da geração de 45. Do outro lado se encontra o poema título, sobre o Capibaribe, o poema mais seco que já se escreveu sobre um rio, um autêntico e não transbordante poema-rio que, mantendo do começo ao fim a tensão, é uma das peças fundamentais, antológicas da poesia brasileira.
"O Cão sem Plumas" saiu quando o autor tinha 30 anos de idade. Se, no meio século seguinte, ele alcançaria às vezes uma qualidade mais elevada aqui e ali, foi este o poema que primeiro encapsulou e expôs o seu melhor. Não é o caso, com essa afirmação, de dizer que o restante de sua poesia seja irrelevante, mera tautologia multiplicativa. Pelo contrário: a graça de ler tudo que vem depois consiste, de fato, em constatar como é que, com tão poucos elementos tão pouco variados, ele conseguiu, afinal, deixar-nos uma obra, à sua maneira lacônica, tão rica como variada.
Prova disso é outro volume que a editora está lançando, "O Artista Inconfessável", uma antologia onde se justapõem poemas extraídos de seus diversos livros e um esboço de documentação fotobiográfica. Tendo em vista que as poucas antologias de Cabral disponíveis no mercado se concentram em sua fase mais dramático-politizada (a de "Morte e Vida Severina"), esta seleção que, despida de intuitos didáticos, evita seu trabalho mais popular e conhecido, tampouco deixa de surpreender e de ser bem-vinda.


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