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Análise/poesia
Obra de João Cabral de Melo Neto começa a ser relançada
"O Cão sem Plumas" e "O Artista Inconfessável" revelam traços marcantes do poeta
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999) tornou-se
muito cedo o poeta homônimo. Já entre seus primeiros livros se entreviam claros
os recursos poéticos e as preocupações temáticas que o seguiriam, sem alterações, vida
afora. Definidos e consolidados
quando o poeta estava na casa
dos 20, eles o caracterizariam
até morrer, quase octogenário.
É possível mesmo dizer deste
poeta, tão amado pelas vanguardas e tantas vezes rotulado
como inovador, que, se há algo
que ele praticamente nunca
fez, foi se renovar, dar uma guinada qualquer, escrever poemas diferentes daqueles que,
sendo sua marca registrada,
eram também inconfundíveis.
Os temas que o pernambucano escolheu para si (ou, como
ele talvez observasse, aqueles
que o escolheram), a árida paisagem natal e outras tantas similares (o sul da Espanha, o Sahel africano), a secura e a penúria do ambiente que lhe reduz
os habitantes a um estado praticamente mineral, a fauna dessa natureza empobrecida e a
morte onipresente, seja pela
simples obsessão com que o autor retornava a eles sem cessar,
seja pela metódica insistência
com que combinava e recombinava sua própria escassez,
transcenderam, no que nos legou, o temático e se converteram na metáfora patente de seu
estilo. Em Cabral, mais do que
em qualquer outro contemporâneo, o estilo era, sem tirar
nem pôr, o homem.
Começando a republicar sua
obra livro por livro, a Alfaguara
permitirá que novos leitores
emulem a experiência dos que,
uma ou duas gerações antes,
lhe acompanharam, com prazer, a carreira. O volume inicial
da série, "O Cão sem Plumas e
Outros Poemas", contém, entre
outras coisas, seus primeiros
poemas e seu livro de estréia,
"Pedra do Sono" (1940-41) com
textos cujo mérito é o de, retrospectivamente, revelar alguns de seus traços permanentes aos admiradores de sua poesia posterior. Os poemas seguintes, publicados originalmente na coletânea "O Engenheiro", já se mostram mais seguros e pessoais.
O cerne deste livro, porém, é
duplo. De um lado estão os poemas programáticos nos quais
Cabral diz em alto e bom som a
que veio: "Psicologia da Composição" e "Antiode", texto fundamental que, já na abertura
("Poesia, te escrevia:/ flor! Conhecendo/ que és fezes./ Fezes/ como qualquer,"), declara
guerra ao lirismo decorativo
ou, na expressão de Manuel
Bandeira, "comedido", bem como à linguagem e ao vocabulário restrito (menos por economia que por pudor) de seus
contemporâneos da geração de
45. Do outro lado se encontra o
poema título, sobre o Capibaribe, o poema mais seco que já se
escreveu sobre um rio, um autêntico e não transbordante
poema-rio que, mantendo do
começo ao fim a tensão, é uma
das peças fundamentais, antológicas da poesia brasileira.
"O Cão sem Plumas" saiu
quando o autor tinha 30 anos
de idade. Se, no meio século seguinte, ele alcançaria às vezes
uma qualidade mais elevada
aqui e ali, foi este o poema que
primeiro encapsulou e expôs o
seu melhor. Não é o caso, com
essa afirmação, de dizer que o
restante de sua poesia seja irrelevante, mera tautologia multiplicativa. Pelo contrário: a graça de ler tudo que vem depois
consiste, de fato, em constatar
como é que, com tão poucos
elementos tão pouco variados,
ele conseguiu, afinal, deixar-nos uma obra, à sua maneira lacônica, tão rica como variada.
Prova disso é outro volume
que a editora está lançando, "O
Artista Inconfessável", uma antologia onde se justapõem poemas extraídos de seus diversos
livros e um esboço de documentação fotobiográfica. Tendo em vista que as poucas antologias de Cabral disponíveis no
mercado se concentram em sua
fase mais dramático-politizada
(a de "Morte e Vida Severina"),
esta seleção que, despida de intuitos didáticos, evita seu trabalho mais popular e conhecido, tampouco deixa de surpreender e de ser bem-vinda.
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