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DVD
"Cenários sonoros" compõem obra de Tati
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
Um copo de leite, uma perna
engessada, um óculos no
chão, um homem caindo da Estátua da Liberdade, uma vida escorrendo pelo ralo de uma banheira:
dos filmes de Hitchcock guardamos sempre uma imagem. Dos de
Jacques Tati, haveremos de guardar um som: o zunir do inseto impertinente de "Carrossel da Esperança", o barulho de uma porta
em "As Férias de Mr. Hulot", de
uma bolinha de pingue-pongue
em "Playtime".
Seja na op-arte de Hitchcock,
seja na som-arte de Tati, é uma
expressão plena do audiovisual
que anuncia a modernidade do
cinema (afinal, Hitchcock não foi
apenas o último dos clássicos,
mas também o primeiro dos modernos).
Em "Meu Tio", primeiro de
uma série de filmes de Tati que a
Continental começa a lançar em
DVD, são dois sons que nos ficam, especialmente, na memória,
cada um invocando um mundo
diverso na França do final dos
anos 50. O som do passarinho que
canta toda vez que Mr. Hulot, o
célebre personagem de Tati, dispõe a janela de seu sobrado num
determinado ângulo, fazendo incidir o reflexo do sol na gaiola. E o
som do peixe-chafariz da casa da
família Arpel, ligado eletronicamente pela orgulhosa dona da casa toda vez que algum visitante
bate a campainha.
Vivo e gracioso, o primeiro som
representa o mundo que Hulot
preza. Repetitivo e artificial, o segundo representa o mundo que
Tati despreza. O mundo de Hulot
é o bairro de Saint-Maure, popular, sujo e autêntico, onde as pessoas, tal como aquele faxineiro
que sempre interrompe o seu trabalho para conversar, ainda se comunicam.
O abominável mundo novo de
Tati é a casa da família, que, em
sua funcionalidade e limpeza, em
sua arquitetura e decoração, não
difere muito da fábrica Plastac, dirigida pelo senhor Arpel.
São dois "cenários sonoros": no
primeiro, predominam a musicalidade e a balbúrdia da França dos
bons e velhos tempos, cuja vivacidade é encarnada sobretudo pelos
feirantes. No segundo cenário, o
ruído dos eletrodomésticos e dispositivos da casa se impõe sobre a
palavra, tornada, ela própria, um
ruído.
Hitchcock dizia que, para ele, as
palavras não deveriam passar de
ruídos na boca das personagens.
É Tati quem realiza a premissa:
em Saint-Maure, as palavras são
ruídos vivos e musicais. No ambiente burguês da família Arpel,
tornam-se ruídos vazios, de uma
maquinal afetação. André Bazin,
o famoso crítico, costumava dizer
que essa distância, comum à visão, Tati guardava da fala, transcendendo seu sentido para surpreendê-la enquanto fenômeno
físico.
O curioso em "Meu Tio" é que
essa distância se efetiva por uma
pós-sincronização flagrantemente fora de tempo. Tati torna literal
assim aquele hiato entre o eu e a
palavra que Robert Bresson, por
exemplo, tanto busca nas "vozes
brancas" de seus antiatores.
Em sua crítica à sociedade moderna, Tati prenuncia um mundo
que faz proliferar os ruídos e desaprende a escutar, que faz proliferar as imagens e desaprende a ver,
que faz proliferar os meios de comunicação e desaprende a se comunicar. Uma sociedade, enfim,
que não quer senão abolir o tempo. E o ouvido de Tati não ouve
senão o tempo.
Ao contrário do senhor Arpel,
um tecnocrata preso ao ritmo
maquinal do trabalho e da ascensão social, Hulot, distraído e sem
ambição, conserva um ritmo próprio de vida, um tempo todo seu.
Se as crianças se identificam
com ele é porque esse discreto senhor soube preservar o "espírito
da infância". Por ainda ser capaz
de se espantar com a vida, por andar com os sentidos alertas, Hulot
está sempre atrasado, sempre um
pouco defasado em relação ao ritmo da sociedade, incapacitado,
portanto, para o trabalho.
Seu tempo é esse imensurável e
inapreensível tempo das brincadeiras.
Meu Tio
Mon Oncle
Direção: Jacques Tati
Produção: França, 1956
Com: Jacques Tati, Jean-Pierre Zola,
Adrienne Servantie
Distribuição: Continental (tel. 0/xx/11/
5084-2440)
Quanto: R$ 35
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