São Paulo, terça-feira, 25 de setembro de 2001

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DVD

"Cenários sonoros" compõem obra de Tati

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Um copo de leite, uma perna engessada, um óculos no chão, um homem caindo da Estátua da Liberdade, uma vida escorrendo pelo ralo de uma banheira: dos filmes de Hitchcock guardamos sempre uma imagem. Dos de Jacques Tati, haveremos de guardar um som: o zunir do inseto impertinente de "Carrossel da Esperança", o barulho de uma porta em "As Férias de Mr. Hulot", de uma bolinha de pingue-pongue em "Playtime".
Seja na op-arte de Hitchcock, seja na som-arte de Tati, é uma expressão plena do audiovisual que anuncia a modernidade do cinema (afinal, Hitchcock não foi apenas o último dos clássicos, mas também o primeiro dos modernos).
Em "Meu Tio", primeiro de uma série de filmes de Tati que a Continental começa a lançar em DVD, são dois sons que nos ficam, especialmente, na memória, cada um invocando um mundo diverso na França do final dos anos 50. O som do passarinho que canta toda vez que Mr. Hulot, o célebre personagem de Tati, dispõe a janela de seu sobrado num determinado ângulo, fazendo incidir o reflexo do sol na gaiola. E o som do peixe-chafariz da casa da família Arpel, ligado eletronicamente pela orgulhosa dona da casa toda vez que algum visitante bate a campainha.
Vivo e gracioso, o primeiro som representa o mundo que Hulot preza. Repetitivo e artificial, o segundo representa o mundo que Tati despreza. O mundo de Hulot é o bairro de Saint-Maure, popular, sujo e autêntico, onde as pessoas, tal como aquele faxineiro que sempre interrompe o seu trabalho para conversar, ainda se comunicam.
O abominável mundo novo de Tati é a casa da família, que, em sua funcionalidade e limpeza, em sua arquitetura e decoração, não difere muito da fábrica Plastac, dirigida pelo senhor Arpel.
São dois "cenários sonoros": no primeiro, predominam a musicalidade e a balbúrdia da França dos bons e velhos tempos, cuja vivacidade é encarnada sobretudo pelos feirantes. No segundo cenário, o ruído dos eletrodomésticos e dispositivos da casa se impõe sobre a palavra, tornada, ela própria, um ruído.
Hitchcock dizia que, para ele, as palavras não deveriam passar de ruídos na boca das personagens. É Tati quem realiza a premissa: em Saint-Maure, as palavras são ruídos vivos e musicais. No ambiente burguês da família Arpel, tornam-se ruídos vazios, de uma maquinal afetação. André Bazin, o famoso crítico, costumava dizer que essa distância, comum à visão, Tati guardava da fala, transcendendo seu sentido para surpreendê-la enquanto fenômeno físico.
O curioso em "Meu Tio" é que essa distância se efetiva por uma pós-sincronização flagrantemente fora de tempo. Tati torna literal assim aquele hiato entre o eu e a palavra que Robert Bresson, por exemplo, tanto busca nas "vozes brancas" de seus antiatores.
Em sua crítica à sociedade moderna, Tati prenuncia um mundo que faz proliferar os ruídos e desaprende a escutar, que faz proliferar as imagens e desaprende a ver, que faz proliferar os meios de comunicação e desaprende a se comunicar. Uma sociedade, enfim, que não quer senão abolir o tempo. E o ouvido de Tati não ouve senão o tempo.
Ao contrário do senhor Arpel, um tecnocrata preso ao ritmo maquinal do trabalho e da ascensão social, Hulot, distraído e sem ambição, conserva um ritmo próprio de vida, um tempo todo seu.
Se as crianças se identificam com ele é porque esse discreto senhor soube preservar o "espírito da infância". Por ainda ser capaz de se espantar com a vida, por andar com os sentidos alertas, Hulot está sempre atrasado, sempre um pouco defasado em relação ao ritmo da sociedade, incapacitado, portanto, para o trabalho.
Seu tempo é esse imensurável e inapreensível tempo das brincadeiras.


Meu Tio
Mon Oncle
    
Direção: Jacques Tati
Produção: França, 1956
Com: Jacques Tati, Jean-Pierre Zola, Adrienne Servantie
Distribuição: Continental (tel. 0/xx/11/ 5084-2440)
Quanto: R$ 35




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