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RODAPÉ
A nau da contracultura
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
A publicação de três autores oriundos da "poesia marginal" é um convite a uma releitura atenta para aquilo que perdura
nessa tendência muito particular
da literatura brasileira. Os livros
são "Poemas (1968-2000)", reunindo a obra de Francisco Alvim,
"Babylon", de Zuca Sardan, e "Nicolas Behr: Eu Engoli Brasília", livro que, por enfocar um autor
menos conhecido, merecerá aqui
maior atenção.
Há uma defasagem temporal
entre Alvim e Sardan (nascidos na
década de 30) e Behr (1958), mas
este último começou a escrever
sob o impacto da antologia "26
Poetas Hoje", de Heloisa Buarque
de Hollanda, cuja viga mestra
eram, justamente, marginais como Ana Cristina César e Cacaso.
Tendo sido um dos últimos a
embarcar na nau da contracultura, Behr também é aquele cuja
produção permaneceu mais presa
ao tom hedonista dos anos 70 e à
forma artesanal de produção:
praticamente todos os seus livros
continuaram sendo impressos
em mimeógrafo -processo que
materializava a condição dos poetas como excluídos das engrenagens do mercado editorial.
"Eu Engoli Brasília" serve não
apenas como retrato do artista
quando jovem mas também como instantâneo de época. Com
belo projeto gráfico, o livro reúne
poemas inéditos, depoimentos,
fotos, entrevista com o autor
-além de um ensaio biográfico
do organizador Carlos Marcelo,
que evita o tom laudatório.
Seu texto é generoso e reconstitui detalhes saborosos da vida de
Behr, como a prisão por porte de
"literatura pornográfica" ou a
performance na entrega de um
prêmio (quando ele leva ao pé da
letra o lema machadiano -"ao
vencedor as batatas" -e entra no
palco para distribuir tubérculos...). Mas, ao mesmo tempo, não
hesita em descrever a melancólica
transformação dos ideais contraculturais em militância ambiental
(a "burocracia da ecologia") e a
breve carreira de Behr como publicitário (quando escreveu um
"slogan" para o então presidente
Figueiredo) -com o correspondente declínio de uma poesia que,
passado o momento contestador
do "desbunde", corre o risco de se
tornar pueril.
Ainda assim, os poemas sobre
Brasília publicados no livro mostram a agudeza da apropriação do
poema-piada e da coloquialidade
modernistas pelos marginais. São
poemas de dois ou três versos, pequenos fragmentos de lirismo e
ironia em relação a esse plano piloto que virou cidade-laboratório
habitada por cobaias: "eixos que
se cruzam./ pessoas que não se
encontram"; "a cidade é isso mesmo que você/ está vendo mesmo
que você não/ esteja vendo nada".
Essa desconstrução do discurso
modernizante encontrou em
Francisco Alvim sua mais completa tradução. Como mostram
os ensaios que Roberto Schwarz
dedicou ao poeta, o ouvido atento
à fala da rua assume função crítica, cria um espaço em que se cruzam vozes dissonantes, transpondo para a estrutura do poema o
jogo de acomodação entre ordem
e desordem, preconceito e exclusão, que perpetua nossa fratura
social: "Parque/ É bom/ mas é
muito misturado", escreve Alvim,
fazendo do espaço público um
microcosmo do desarranjo social.
Mas a leitura dos livros incluídos em "Poemas (1968-2000)"
também faz crescer outra vertente
de Alvim, mais contemplativa,
percorrida por aquele "sentimento cósmico" de que fala Schwarz e
que está presente desde "Sol dos
Cegos", de 1968.
Finalmente, e apenas como registro, o livro que Sardan nos
apresenta como "folhetins brasileiros" mostra uma outra forma
de permanência da poesia marginal: são cenas teatrais com personagens farsescas (uma deusa lúbrica, sábios de araque e todo um
bestiário exótico) que compõem
uma cômica e oswaldiana Babilônia -não havendo melhor prova
de vitalidade do que essa capacidade de nos fazer rir com pastiches e deboches.
Nicolas Behr: Eu Engoli Brasília
Autor: Carlos Marcelo (org.)
Editora: Ponto Cerrado
Quanto: R$ 30 (120 págs.)
Poemas (1968-2000)
Autor: Francisco Alvim
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 50 (408 págs.)
Babylon Mystérios de Ishtar
Autor: Zuca Sardan
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 32 (160 págs.)
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