São Paulo, sábado, 25 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

A nau da contracultura

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A publicação de três autores oriundos da "poesia marginal" é um convite a uma releitura atenta para aquilo que perdura nessa tendência muito particular da literatura brasileira. Os livros são "Poemas (1968-2000)", reunindo a obra de Francisco Alvim, "Babylon", de Zuca Sardan, e "Nicolas Behr: Eu Engoli Brasília", livro que, por enfocar um autor menos conhecido, merecerá aqui maior atenção.
Há uma defasagem temporal entre Alvim e Sardan (nascidos na década de 30) e Behr (1958), mas este último começou a escrever sob o impacto da antologia "26 Poetas Hoje", de Heloisa Buarque de Hollanda, cuja viga mestra eram, justamente, marginais como Ana Cristina César e Cacaso.
Tendo sido um dos últimos a embarcar na nau da contracultura, Behr também é aquele cuja produção permaneceu mais presa ao tom hedonista dos anos 70 e à forma artesanal de produção: praticamente todos os seus livros continuaram sendo impressos em mimeógrafo -processo que materializava a condição dos poetas como excluídos das engrenagens do mercado editorial.
"Eu Engoli Brasília" serve não apenas como retrato do artista quando jovem mas também como instantâneo de época. Com belo projeto gráfico, o livro reúne poemas inéditos, depoimentos, fotos, entrevista com o autor -além de um ensaio biográfico do organizador Carlos Marcelo, que evita o tom laudatório.
Seu texto é generoso e reconstitui detalhes saborosos da vida de Behr, como a prisão por porte de "literatura pornográfica" ou a performance na entrega de um prêmio (quando ele leva ao pé da letra o lema machadiano -"ao vencedor as batatas" -e entra no palco para distribuir tubérculos...). Mas, ao mesmo tempo, não hesita em descrever a melancólica transformação dos ideais contraculturais em militância ambiental (a "burocracia da ecologia") e a breve carreira de Behr como publicitário (quando escreveu um "slogan" para o então presidente Figueiredo) -com o correspondente declínio de uma poesia que, passado o momento contestador do "desbunde", corre o risco de se tornar pueril.
Ainda assim, os poemas sobre Brasília publicados no livro mostram a agudeza da apropriação do poema-piada e da coloquialidade modernistas pelos marginais. São poemas de dois ou três versos, pequenos fragmentos de lirismo e ironia em relação a esse plano piloto que virou cidade-laboratório habitada por cobaias: "eixos que se cruzam./ pessoas que não se encontram"; "a cidade é isso mesmo que você/ está vendo mesmo que você não/ esteja vendo nada".
Essa desconstrução do discurso modernizante encontrou em Francisco Alvim sua mais completa tradução. Como mostram os ensaios que Roberto Schwarz dedicou ao poeta, o ouvido atento à fala da rua assume função crítica, cria um espaço em que se cruzam vozes dissonantes, transpondo para a estrutura do poema o jogo de acomodação entre ordem e desordem, preconceito e exclusão, que perpetua nossa fratura social: "Parque/ É bom/ mas é muito misturado", escreve Alvim, fazendo do espaço público um microcosmo do desarranjo social.
Mas a leitura dos livros incluídos em "Poemas (1968-2000)" também faz crescer outra vertente de Alvim, mais contemplativa, percorrida por aquele "sentimento cósmico" de que fala Schwarz e que está presente desde "Sol dos Cegos", de 1968.
Finalmente, e apenas como registro, o livro que Sardan nos apresenta como "folhetins brasileiros" mostra uma outra forma de permanência da poesia marginal: são cenas teatrais com personagens farsescas (uma deusa lúbrica, sábios de araque e todo um bestiário exótico) que compõem uma cômica e oswaldiana Babilônia -não havendo melhor prova de vitalidade do que essa capacidade de nos fazer rir com pastiches e deboches.


Nicolas Behr: Eu Engoli Brasília
   
Autor: Carlos Marcelo (org.)
Editora: Ponto Cerrado
Quanto: R$ 30 (120 págs.)

Poemas (1968-2000)
    
Autor: Francisco Alvim
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 50 (408 págs.)

Babylon Mystérios de Ishtar
   
Autor: Zuca Sardan
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 32 (160 págs.)



Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: O Enigma de Qaf: Alberto Mussa tece lenda árabe na trilha de Borges
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.