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"DUAS HISTÓRIAS"
Conrad revela naufrágio da civilização
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Na gênese do cinema havia o
trem. Basta lembrar de "A
Chegada de um Trem à Estação",
que assombrou a primeira exibição pública do "cinematographe"
dos irmãos Lumière, em 1895. Da
mesma forma, é possível pensar
no navio como veículo iniciático
do romance burguês, desde "Robinson Crusoé" (1719), de Daniel
Defoe.
Os aspectos realistas, psicológicos e ideológicos contidos na obra
de Defoe levaram a ficção a um
novo patamar. Foram necessários
quase duzentos anos para que a
navegação, associada à busca do
ser humano por algo que ele não
sabe bem o que é, viesse a público
com uma nova e -assustadora- feição. Em Joseph Conrad
(1857-1924), vemos como essa
busca oculta uma falácia.
O relato de Defoe baseou-se
num caso real de naufrágio sofrido por um escocês. Já as histórias
de Conrad derivam de sua própria vida. De origem polonesa,
juntou-se à marinha mercante
francesa e depois à britânica.
Contrabandeou armas para a Espanha. Esteve em Sydney, Bombaim, Congo (sua experiência como capitão de um vapor fluvial
serviu de mote para "O Coração
das Trevas") e no arquipélago da
Malásia.
Estas "Duas Histórias" inéditas
de Conrad tratam do tema do
conflito entre a civilização conquistadora e os povos conquistados, ditos primitivos, com que ela
se depara. No primeiro conto um
grupo de contrabandistas de armas trava amizade com um chefe
de tribo malaio, que tem, literalmente, um caso pessoal de assombração para contar.
No segundo, chamado de "Um
Posto Avançado do Progresso",
dois comerciantes cuidam de um
entreposto -e enlouquecem-
no interior da África. Certa altura,
um personagem lê artigo que fala
da "expansão colonial". O periódico louva a "natureza sagrada do
trabalho da civilização" e "os méritos daqueles que se ocupavam
em levar luz, fé e comércio aos lugares obscuros do planeta". Desde Defoe, o comércio é visto como
aliado do avanço civilizador.
Mas a afirmação do conto de
Conrad é irônica. O escritor mostra como a civilização deixou-se
tingir pelas forças "obscuras", que
nem são tanto do outro, do colonizado incivil, mas de si própria.
Assassinato e comércio de escravos são alguns dos "pecados" em
que incorrem os negociantes.
O contraponto, no primeiro
conto, é mais brando. O nativo
sente-se perseguido pelo fantasma de um companheiro que
atraiçoou. Ele pede aos ingleses
um amuleto protetor e ganha
uma moeda com a efígie da rainha Vitória.Um dos contrabandistas diz, sobre essa senhora:
"Ela comanda um espírito, também -o espírito da sua nação;
um espírito dominador...".
No epílogo ambíguo, os ingleses
estão de volta a seu país, e confrontam esse espírito, plasmado
na terra devastada da paisagem
londrina, com a crença do malaio
nos poderes sobrenaturais: "Uma
linha de placas amarelas com letras azuis aproximou-se vagarosamente de nós balançando-se alto, uma após a outra, como destroços de navios naufragados, flutuando à deriva sobre um rio de
chapéus".
À navegação, Conrad contrapõe
o naufrágio (da civilização), insinuado no trecho acima. Se o navio
representa o domínio implacável
do conquistador, o naufrágio
abeira o ser humano de seu espelho mais negro, revelando o logro
de sua confiança. É a partir dessa
desilusão provocada pelo retrato
de alcance mais aproximado que
o romance -ou, de todo modo, a
ficção moderna- pode enfim começar.
Duas Histórias
Autor: Joseph Conrad
Tradutora: Julieta Cupertino
Editora: Revan
Quanto: R$ 22 (116 págs.)
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