São Paulo, sábado, 25 de setembro de 2004

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"DUAS HISTÓRIAS"

Conrad revela naufrágio da civilização

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Na gênese do cinema havia o trem. Basta lembrar de "A Chegada de um Trem à Estação", que assombrou a primeira exibição pública do "cinematographe" dos irmãos Lumière, em 1895. Da mesma forma, é possível pensar no navio como veículo iniciático do romance burguês, desde "Robinson Crusoé" (1719), de Daniel Defoe.
Os aspectos realistas, psicológicos e ideológicos contidos na obra de Defoe levaram a ficção a um novo patamar. Foram necessários quase duzentos anos para que a navegação, associada à busca do ser humano por algo que ele não sabe bem o que é, viesse a público com uma nova e -assustadora- feição. Em Joseph Conrad (1857-1924), vemos como essa busca oculta uma falácia.
O relato de Defoe baseou-se num caso real de naufrágio sofrido por um escocês. Já as histórias de Conrad derivam de sua própria vida. De origem polonesa, juntou-se à marinha mercante francesa e depois à britânica. Contrabandeou armas para a Espanha. Esteve em Sydney, Bombaim, Congo (sua experiência como capitão de um vapor fluvial serviu de mote para "O Coração das Trevas") e no arquipélago da Malásia.
Estas "Duas Histórias" inéditas de Conrad tratam do tema do conflito entre a civilização conquistadora e os povos conquistados, ditos primitivos, com que ela se depara. No primeiro conto um grupo de contrabandistas de armas trava amizade com um chefe de tribo malaio, que tem, literalmente, um caso pessoal de assombração para contar.
No segundo, chamado de "Um Posto Avançado do Progresso", dois comerciantes cuidam de um entreposto -e enlouquecem- no interior da África. Certa altura, um personagem lê artigo que fala da "expansão colonial". O periódico louva a "natureza sagrada do trabalho da civilização" e "os méritos daqueles que se ocupavam em levar luz, fé e comércio aos lugares obscuros do planeta". Desde Defoe, o comércio é visto como aliado do avanço civilizador.
Mas a afirmação do conto de Conrad é irônica. O escritor mostra como a civilização deixou-se tingir pelas forças "obscuras", que nem são tanto do outro, do colonizado incivil, mas de si própria. Assassinato e comércio de escravos são alguns dos "pecados" em que incorrem os negociantes.
O contraponto, no primeiro conto, é mais brando. O nativo sente-se perseguido pelo fantasma de um companheiro que atraiçoou. Ele pede aos ingleses um amuleto protetor e ganha uma moeda com a efígie da rainha Vitória.Um dos contrabandistas diz, sobre essa senhora: "Ela comanda um espírito, também -o espírito da sua nação; um espírito dominador...".
No epílogo ambíguo, os ingleses estão de volta a seu país, e confrontam esse espírito, plasmado na terra devastada da paisagem londrina, com a crença do malaio nos poderes sobrenaturais: "Uma linha de placas amarelas com letras azuis aproximou-se vagarosamente de nós balançando-se alto, uma após a outra, como destroços de navios naufragados, flutuando à deriva sobre um rio de chapéus".
À navegação, Conrad contrapõe o naufrágio (da civilização), insinuado no trecho acima. Se o navio representa o domínio implacável do conquistador, o naufrágio abeira o ser humano de seu espelho mais negro, revelando o logro de sua confiança. É a partir dessa desilusão provocada pelo retrato de alcance mais aproximado que o romance -ou, de todo modo, a ficção moderna- pode enfim começar.


Duas Histórias
    
Autor: Joseph Conrad
Tradutora: Julieta Cupertino
Editora: Revan
Quanto: R$ 22 (116 págs.)



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