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FERNANDO GABEIRA
Todo poder ao Photoshop
Eram quase 9h da noite numa pousada de Mateiros, no
Tocantins. O dia de viagem no Jalapão fora difícil por causa dos solavancos e da poeira da estrada.
Mesmo assim, sentei para ler antes de dormir. "O Livreiro de Kabul", da jornalista Asne Seierstad.
É um relato do cotidiano de Kabul, centrado na família do livreiro Sultan Khan.
O cansaço me fez adormecer em
torno da página 90, em que a autora reproduzia as principais leis
dos talebans. Acordei com um jingle de propaganda eleitoral. A
pousada estava ao lado da sede
do PRTB. O jingle nos pedia voto
para Gumercino.
Acordei um pouco contrariado.
Tinha viajado tanto para fugir da
campanha eleitoral e descobria
que, no interior do país, ela era
muito mais intensa. Gumercino
talvez tivesse um D no nome. Mas
o escrivão comeu. Cartórios no
Brasil costumam engolir letras.
Há alguns que cospem. Mas o de
Gumercino engoliu.
Se estivéssemos sob controle dos
talebans, o PRTB e Gumercino seriam presos. O artigo 2º do decreto anunciado na rádio sharia. Por
alguns minutos, cheguei a desejar
que a região de Mateiros fosse incluída no decreto de 1996. Recuei
horrorizado porque descobri que
também eu estaria preso. O artigo
8º proibia a tomada de fotos e eu
passaria grande parte do meu
tempo produzindo imagens do
Tocantins. Até mesmo a mulher
que vi lavando roupa no rio, ao
entrar na cidade, estaria condenada pelo artigo 12º, que proíbe
isso expressamente.
Comecei então a tolerar o jingle
do Gumercino. Percebi que seus
atores dominavam bem a música
sertaneja. Percebi que sua qualidade não era inferior a dos das
metrópoles. Lembrei-me dos inúmeros trios elétricos que encontrei
pelo caminho. Quase todos com
jingles agradáveis, se ouvidos
uma só vez.
De modo geral, isso não é possível. No hotel Serra Geral, em Natividade, o dono do trio elétrico
hospedou-se ao meu lado. Natividade ficava a dois quilômetros.
Mesmo assim, ele chegava e saía
com o som a toda altura. Olhei
pela janela e vi que quase todos os
partidos, do PP ao PT, apoiavam
o candidato do trio elétrico. Por
que tocar música em dois quilômetros desertos de estrada?
Cheguei à conclusão de que estava diante da fragilidade profissional atribuída aos brasileiros:
traficante cheira, puta goza e dono de trio elétrico curte jingles
eleitorais numa estrada deserta.
O que me impressionou, desde a
saída de Palmas, não foram os
jingles, mas as fotos dos candidatos. São todos jovens, sorridentes,
com um saudável tom de pele.
Percebi como alguns instrumentos são onipresentes no Brasil. Um
deles é o Photoshop. Submeter sua
foto a um tratamento no Photoshop é tão banal como fazer registro da candidatura no TRE.
Eu, que já tinha uma pergunta
feita, em caso de vida depois da
morte, vou acrescentar mais uma
à minha curiosidade no além. Até
essa viagem, tudo o que queria
saber é para onde vão, após a
morte, as canetas, as chaves e os
óculos que a gente perde ao longo
da passagem pela Terra.
Agora quero saber para onde
vão as rugas, pés-de-galinha e
manchas que os marqueteiros escondem na propaganda eleitoral.
Errei ao supor que as campanhas no interior não são intensas.
Cidades pequenas vivem do fundo de municípios. A batalha eleitoral é também em torno da grande fonte de emprego, que é a prefeitura.
Única diferença: não há programa eleitoral gratuito.
Amigos que assistem ao programa disseram que pode ser dividido em duas partes nas grandes cidades. A primeira é Neverlândia:
uns candidatos que você não
acredita que existam na vida real.
A segunda é a Umseteumlândia,
aqueles que claramente estão
querendo melhorar de vida.
Rompi com meu candidato a
vereador antes da partida. Ele é
da Neverlândia e nada no Flamengo. Pediu meu voto delicadamente. Lembrei-me que ele só nada de costas, assim mesmo com
uma lentidão que assombra as
crianças na beira da piscina. Disse-lhe que só votaria nele se adotasse o slogan: "Nadando de costas pelo Brasil". Ele achou que era
sacanagem. Tentei uma negociação: nadando de costas pelo município? Sem acordo.
No dia seguinte, na cachoeira
da Formiga, vi um senhor de chapéu. Quando fazia sua foto, o visor mostrava, um pouco acima da
cabeça, um cartaz que dizia Martins de novo. Martins é o prefeito
que ganhou uma ambulância e
foi preso com ela num bar, no dia
mesmo em que a retirou.
Não ouvi nenhum jingle de
Martins na noite anterior. Digo
isso a seu favor. Como diria diante do espelho ao fazer a barba
matinal: se valesse o artigo 3º do
taleban, seria preso até que minha barba tivesse o comprimento
de um punho fechado.
Com as fotos proibidas, barba
inexistente e cabelo de estilo ocidental, seria enquadrado em vários artigos do código taleban. Só
escaparia talvez do que proíbe tocar bateria.
Deveria agradecer ao nosso regime e pedir desculpas ao dono do
trio elétrico pelos palavrões que
gritei na escuridão da noite. Afinal, ninguém é perfeito: todo poder ao Photoshop.
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