São Paulo, domingo, 25 de setembro de 2005

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MÔNICA BERGAMO

Cinqüenta anos após o lançamento de "Rio 40 Graus", o cineasta Nelson Pereira dos Santos filma uma história sobre a corrupção na capital do Brasil

Brasília 40 graus

Ana Ottoni/Folha Imagem
Sempre sereno nos bastidores, Nelson monitora cena de "Brasília 18%"; filme é o 18º da carreira do diretor


De boné, camisa com documentos no bolso e uma calça de brim com a barra dobrada, o cineasta Nelson Pereira dos Santos caminha pelo set de "Brasília 18%", seu 18º longa-metragem, em um estúdio no bairro da Tijuca, no Rio. O filme conta uma história de crime e amor, alinhavada por escândalos de corrupção na capital federal. "Está muito bom", ele diz, diante do cenário que reproduz "um restaurante de Brasília, muito freqüentado por políticos e jornalistas". "É o Piantella?", pergunta o ator Otávio Augusto, que faz um repórter no filme. "Uma imitação", diz Nelson.
 
CPI, conchavos, desvio de verba, tudo isso está no roteiro do longa, escrito antes dos escândalos do governo Lula. "Mas acabei atualizando alguma coisa. Tem, por exemplo, um personagem que seria empreiteiro e virou publicitário", explica o cineasta, 76 anos, diretor dos premiados "Vidas Secas", "Memórias do Cárcere" e "Rio 40 Graus" -esse último, considerado a pedra-fundamental do Cinema Novo, está completando 50 anos de lançamento.
É domingo e as filmagens entram na quinta semana (serão oito, no total). Parte das cenas foi feita em Brasília. Nelson queria filmar na Câmara dos Deputados, mas Severino Cavalcanti, na época o presidente da casa, não deixou. O diretor, que já militou no Partido Comunista Brasileiro, está decepcionado com o atual governo. "Votei no Lula e me entristece muito ver toda essa corrupção."
Um jornal cenográfico traz a manchete: "Machado de Assis e Augusto dos Anjos vão depor na CPI do Orçamento". No filme, muitos dos personagens têm nomes de escritores famosos: o médico legista Olavo Bilac (Carlos Alberto Riccelli), a deputada George Sand (Malu Mader), o motorista Lima Barreto (Ilya São Paulo). "Foi uma estratégia para criar o clima de escândalo político, com nomes que soam naturais para o público", justifica o diretor.
 
Nelson reúne os atores no set. Ney Sant" Anna, segundo dos quatro filhos do diretor, participará da cena. Ele trabalha com o pai desde garoto. "Lembro dos bastidores de "Como Era Gostoso o Meu Francês", em que os atores ficavam constrangidos porque tinham que ficar pelados em cena e meu pai fez a equipe toda tirar a roupa. Até ele dirigiu o filme pelado."
 
Ney senta-se à mesa. A equipe retoca os objetos de cena: fotos de Brasília, desenhos de Oscar Niemeyer. Otávio Augusto caminha em direção a uma das adegas do cenário. Lê os rótulos com atenção. "São quase 600 garrafas, que pegamos emprestadas", diz a produtora Márcia Pereira dos Santos, também filha do cineasta, segundos antes de se ouvir um estrondo no estúdio. É Otávio Augusto que, distraído com os vinhos, não percebeu um fosso por trás do balcão e caiu de dois metros de altura. Acabou se agarrando à adega e levando as garrafas com ele. Nelson corre até o fosso: "Otávio, está tudo bem?". Silêncio. Uma produtora grita: "Chamem uma ambulância!" Augusto é levado para o hospital. Alívio geral: só teve ferimentos leves. Tranquilizado, Nelson desabafa: "A camisa dele ficou suja de vinho, parecia sangue. Tive uma vertigem, mas não desmaiei. Que maricas!", brinca.
 
A atriz Bruna Lombardi aparece em flashbacks no filme, como a mulher morta do personagem de Riccelli. Ela chega ao set e encontra o ator, seu marido na vida real. Os dois se abraçam. O filme, aliás, tem várias belas mulheres. Karine Carvalho faz Eugênia, que é o centro da história: Olavo Bilac investiga se um corpo encontrado em pedaços é o dela e, vendo fotos e ouvindo relatos sobre sua vida, acaba se apaixonando pela moça e torcendo para ela estar viva. Mônica Keiko, 15, foi eleita a musa da equipe. "Ela é a nossa bonequinha de porcelana", define o figurinista Renaldo Machado.
 
Mônica e Riccelli ensaiam uma cena que se passa em um quarto de hotel. Nelson orienta: "Mônica, quero ver você bem confortável no sofá. Está sentido como o sofá é macio?". Posiciona-se em frente ao monitor e diz: "Ação!". Assiste à tomada imóvel, com a mão no queixo. Bate palmas uma vez, sinalizando o corte da cena. Pede para repetir, "só para garantir". "Está muito bom. Mônica, você está linda." Ela sugere alterações no texto e é atendida: "Claro, se você acha melhor, pode ser."
Depois de uma folga na terça-feira, o elenco volta ao estúdio. Francisca Gonzaga (Bete Mendes), mãe de Eugênia, vai a um centro espírita. Os personagens de Riccelli e Malu Mader entrarão na metade da cena. O ator circula nos bastidores e almoça com a equipe. Ela se isola no camarim. No bufê, o cardápio ganha variações de acordo com as preferências do elenco. Riccelli não come carne vermelha, então fazem peixe todos os dias. Malu pede sushi e sashimi, mas, como fica caro contratar um sushiman, compram os pratos em um restaurante, só para ela.
 
Acaba o almoço e Malu chega ao set. Manda avisar que não permitirá ser fotografada, nem mesmo em cena. Ficou magoada com a cobertura da imprensa sobre sua cirurgia de retirada de um cisto na cabeça. Entre uma cena e outra, recebe da camareira um prato com banana amassada e uma bisnaga de mel. "Que delícia. Está de mamãe pra filhinha", agradece, manuseando uma colherzinha de plástico cor-de-rosa. Nelson se aproxima dos figurantes, todos de branco, em volta da mesa do centro espírita. "Todos concentrados!". A atriz Miramar Mangabeira faz a médium. "Ação!". Nelson assiste atento, com as mãos nos joelhos. A atriz se concentra e grita muito, como se estivesse recebendo o espírito de uma criança. O silêncio é geral. Nelson sorri diante do monitor. Bate palmas para cortar a cena. A equipe aplaude nos bastidores. Bete Mendes se emociona e apanha um lenço de papel para enxugar as lágrimas. Nelson se levanta com força da cadeira e grita, elogiando seus atores mais uma vez. "Está muuuito bom! Está ótimo! Está ótimo!!"


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