São Paulo, domingo, 25 de setembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TELEVISÃO

Em nova temporada, série tenta não repetir fracassos do passado

"Lost" busca o equilíbrio entre mitos e suspense

LORNE MANLY
DO "NEW YORK TIMES", EM LOS ANGELES

Em "Lost" (série exibida no Brasil pelo canal pago AXN), um grupo de sobreviventes de um acidente aéreo enfrenta uma ilha no Pacífico repleta de mistérios.
Um monstro devorou um piloto. Um urso polar fez estragos no meio da selva. Um paraplégico enigmático voltou a andar. A primeira temporada terminou com duas situações de suspense. Mas o maior quebra-cabeças que os produtores enfrentam no início da segunda temporada, na semana passada nos EUA, deve ser o de como evitar o repúdio do público, que fez do programa um dos dramas de maior sucesso da rede ABC em mais de dez anos -no Brasil, a nova temporada só chegará no ano que vem.
Os criadores de séries como "Lost", imbuídas de mitologias próprias, enfrentam um dilema -os espectadores anseiam por respostas, mas, se os criadores revelarem demais, existe o risco de o público os abandonar, como aconteceu com "Twin Peaks" no início dos anos 90. Outro risco é o de ir soltando dicas muito pequenas sobre como as peças se encaixam, e a obsessão dos espectadores pode virar frustração, como aconteceu em "Arquivo X".
"Lost" não é um drama típico da TV, nem em sua gênese nem em seu elenco ou seu pendor pela ambigüidade. A idéia surgiu em 2003, do então presidente da ABC, Lloyd Braun. Sentado em seu hotel em uma ilha no Havaí, Braun olhava para a praia e pensava em como traduzir o filme "Náufrago", com Tom Hanks, para o formato de seriado. Braun aplicou fórmulas de Hollywood e teve a idéia de um híbrido do filme e o "reality show" "Survivor".
Os primeiros esboços de roteiro não o agradaram, então Braun procurou J.J. Abrams, criador de "Alias", e lhe ofereceu como parceiro o roteirista Damon Lindelof. A aposta era imensa. "Não havia nada que não me preocupasse", diz Braun: desde o custo (mais de US$ 10 milhões -cerca de R$ 22,7 mi- para o episódio piloto, de duas horas) até seu clima sombrio, passando pelo elenco.
Além disso, todos se lembravam do que acontecera com "Twin Peaks": quando o seriado estreou, em 1990, o país inteiro se envolveu no mistério de quem tinha assassinado Laura Palmer. Mesmo assim, pouco mais de um ano depois o seriado tinha desaparecido do mapa. "O truque é que você precisa manter todas as bolas no ar ao mesmo tempo, resolvendo algumas histórias ao mesmo tempo em que resolve outras", comentou Frost. "Twin Peaks" era um seriado em que a mitologia pesava mais do que todo o resto", diz o produtor Carlton Cuse. O temor de se deixar envolver demais nas complexidades da mitologia do programa impede Cuse de passear pelos sites montados por fãs, como é o caso de Lost-TV (www.lost-tv.com). Lindelof acrescentou: "O importante são os personagens. Tudo precisa estar a serviço deles. Eles são o ingrediente secreto".
Numa manhã deste mês, na Califórnia, Lindelof, 32, e Cuse, 46, visitaram seus colegas roteiristas. Javier Grillo-Marxuach, que faz as vezes de produtor supervisor, pôs os dois a par dos avanços feitos no primeiro esboço do oitavo episódio, cujo tema é o perdão. Num quadro branco, os roteiristas apresentam esboços e mapeiam as cinco partes que compõem cada episódio. Mas eles tentam decidir qual personagem terá direito a um dos marcos da série: o flashback detalhado sobre sua vida anterior à chegada à ilha.
Na discussão, não faltam referências à cultura popular. Para tentar conduzir a técnica e o caminho da narrativa, Lindelof usa referências a filmes tão diversos quanto "Pulp Fiction", "A Morte e a Donzela" e "Um Dia de Cão".
Enquanto isso, Cuse sugere que eles mantenham em mente o conceito bíblico de perdão: "Isso terá grande ressonância". Ele e Lindelof incentivam os roteiristas a simplificar. Decidam o que está acontecendo na ilha, e o foco do flashback ficará claro, dizem. Ambos acreditam na necessidade de um plano de longo prazo para a série, mas eles gostam de desviar-se dos roteiros convencionais.
Os roteiristas tinham previsto, por exemplo, intensificar a hostilidade entre os personagens Michael Dawson (Harold Perrineau) e Jin-Soo Kwon (Daniel Dae Kim), enquanto se desenvolveria o romance entre Michael e a mulher de Jin, Sun (Yunjin Kim). Mas, quando criaram a história passada do casal, na Coréia, investiram na relação do casal. "Quando vemos coisas que gostamos, mudamos a história para incluí-las. Somos espectadores com controle sobre a história."
Uma maneira pela qual eles exercem esse controle é seguir o modelo de fatos científicos que detectam nos livros de Michael Crichton. "Podem acontecer coisas fenomenais, mas sempre há explicação científica", diz Lindelof. Assim, quando o cirurgião Jack Shephard (Matthew Fox) tem visões de seu pai morto, a produção informa ao público que ele está há três dias sem dormir. O fato é que o fantasma o conduz até a água que eles tanto precisam, então talvez não seja alucinação.
Os dois homens admiram Stephen King. ""A Dança da Morte" foi um livro que deu subsídios a "Lost'", comentou Lindelof. "Tematicamente falando, os dois são a mesma coisa, ou seja, a filosofia fundamental de "viver juntos, morrer sozinho"."
O maior desafio para a equipe pode vir do próprio sucesso de "Lost". Diferentemente de J.K. Rowling, que tem o consolo de saber que a série "Harry Potter" vai chegar ao fim no sétimo livro, os produtores de "Lost" não têm esse luxo. Enquanto a audiência continuar boa, a série permanece no ar. As implicações para a narrativa são imensas. "Se soubéssemos que a série teria 88 episódios, poderíamos mapear onde cairiam todas as peças da mitologia e poderíamos ir construindo a história até seu final. Mas não sabemos e não podemos saber. Este seriado é um empreendimento financeiro de grande sucesso para a ABC, e o objetivo dela é levar o seriado adiante pelo maior prazo possível", diz Cuse.
"Quanto mais tempo você mantém acesso o interesse das pessoas, mais elas se apegam à mitologia da série e mais decepcionadas elas ficarão quando ela terminar, não importa de que maneira", diz Spotnitz. A resolução das situações emocionais entre os personagens é mais importante do que colocar a última peça de um quebra-cabeças complicado, e Spotnitz está preparando seu novo seriado na ABC, "Night Stalker", com isso em mente.
Lindelof e Cuse ambos endossam a teoria de que o importante na série é a viagem, não o destino. Os criadores de "Lost" sabem, sim, como a série vai terminar. Os sobreviventes não vão descobrir que fazem parte de uma experiência maligna, nem descobrir que estão no purgatório, nem tampouco despertar de um pesadelo. "Eles vão sair da ilha", disse Cuse. Então ele e Lindelof acrescentaram, quase em uníssono: "Se for uma ilha, é claro".


Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Música: Avril Lavigne cresce e aparece no Pacaembu
Próximo Texto: Crítica: Emmy premia séries mais "cinematográficas"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.