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RODAPÉ
A antropofagia lusitana de Alberto Pimenta
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Bernard Shaw escreveu certa vez que "Inglaterra e Estados Unidos são dois países separados pela mesma língua". Pode-se dizer o mesmo de Brasil e Portugal: só isso explica que a obra de
um escritor como Alberto Pimenta seja tão desconhecida por aqui.
Existem inúmeros autores portugueses ignorados em nosso
meio editorial. Mas o caso de Pimenta é especialmente estranho,
pois sua obra tem duas características que o aproximam da literatura brasileira: uma experimentação formal que dialoga com o
concretismo e um humor desbocado, satírico, "antropofágico".
Até hoje, só havia um livro de
Pimenta lançado no país: "Discurso sobre o Filho-da-Puta", da
extinta Codecri -uma série de
variações ontológicas, em prosa e
verso, sobre o tema em questão.
Agora, surge uma antologia intitulada "Ado Silêncio", reunindo
pequenas narrativas, fragmentos
e poemas desse escritor nascido
no Porto em 1937.
O livro traz um prefácio do crítico João Alexandre Barbosa, que
mostra como a obra de Pimenta
se inscreve na linhagem dos "cantares de escárnio e maldizer, que
sempre ressurgem nos melhores
momentos da tradição da poesia
em língua portuguesa, aí se incluindo a brasileira, desde um
Gregório de Matos até um Oswald
de Andrade".
Em "Ado Silêncio", encontramos uma poética que mobiliza a
invenção formal para romper não
apenas com ditames estilísticos,
mas com o marasmo mental coagulado em fórmulas literárias e no
cultivo da tradição (há toda uma
seção do livro dedicada aos discursos da nacionalidade, essa obsessão com a "identidade" que catalisa portugueses e brasileiros).
De certo modo, Pimenta é uma
resposta ao caráter supostamente
apolítico das vanguardas do pós-guerra. Ele faz uma poesia do
"significante", da concretude da
palavra. Mas os signos que elege
são sempre índices do autorismo
e do conservadorismo lusotropical, como encontramos em um
poema epigramático como "O Inverso e Vice-Versa":
"cada cabeça sua sentença/ diz o
condenado cuspindo no chão/ cada sentença sua cabeça/ diz o carrasco cuspindo nas mãos".
Happenings
Um outro aspecto do livro são
os "happenings" de Pimenta. Depois de passar anos lecionando na
Alemanha, por causa da ditadura
salazarista, o escritor marcou seu
retorno a Portugal com uma série
de intervenções públicas.
Em 1977, ficou exposto durante
duas horas numa jaula do Palácio
dos Chimpanzés do Jardim Zoológico de Lisboa registrando a
reação do público. O resultado é
uma sucessão hilariante de mais
de 200 frases transcritas na seção
"Vox Populi Vox Dei":
"Ó pá, anda cá ver isto! Aqui o
macaco é um homem"; "Se calhar
é tarado sexual"; "É um homem,
mas deve ser uma espécie rara";
"Quem vai reagir mal são os católicos: isto quer dizer que o homem
descende do macaco"; "Já há portugueses enjaulados? Já não servem as cadeias?".
Mas o lado anedótico de Pimenta não deve nos enganar. Sua obra
ensaística ("O Silêncio dos Poetas", "A Magia que Tira os Pecados do Mundo") revela um autor
que concebe a literatura como
uma gnose e dialoga com autores
como Brice Parain, Heidegger e
Adorno.
Sua erudição, porém, está a serviço do erotismo, do anticlericalismo e da crítica social. Nesse
sentido, o mais antiportuguês dos
escritores portugueses é um anarquista que usa todos os meios
possíveis para dar corpo a uma
dessacralização radical da poesia,
da arte, da cultura, da vida.
Finalmente, seria preciso dizer
que a singularidade de "Ado Silêncio" também diz respeito à forma de comercialização. Publicado
pelo selo Odradek, o livro resgata
uma antiga prática editorial: a
subscrição.
Antes de lançar o título em livrarias, a editora o oferece aos leitores interessados, que pagam
por antecipação. Com isso, os editores minimizam os riscos da empreitada; os leitores, em contrapartida, garantem seu exemplar
num mercado em que livros de
poesia costuma ter tiragens baixíssimas.
As subscrições podem ser feitas
pelo e-mail fweintraub@uol.com.br ou pelo tel. 0/xx/11/4438-4358.
Ado Silêncio
Autor: Alberto Pimenta
Editora: Odradek
Quanto: R$ 25 (144 págs.)
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