UOL


São Paulo, sábado, 25 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

A antropofagia lusitana de Alberto Pimenta

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Bernard Shaw escreveu certa vez que "Inglaterra e Estados Unidos são dois países separados pela mesma língua". Pode-se dizer o mesmo de Brasil e Portugal: só isso explica que a obra de um escritor como Alberto Pimenta seja tão desconhecida por aqui.
Existem inúmeros autores portugueses ignorados em nosso meio editorial. Mas o caso de Pimenta é especialmente estranho, pois sua obra tem duas características que o aproximam da literatura brasileira: uma experimentação formal que dialoga com o concretismo e um humor desbocado, satírico, "antropofágico".
Até hoje, só havia um livro de Pimenta lançado no país: "Discurso sobre o Filho-da-Puta", da extinta Codecri -uma série de variações ontológicas, em prosa e verso, sobre o tema em questão. Agora, surge uma antologia intitulada "Ado Silêncio", reunindo pequenas narrativas, fragmentos e poemas desse escritor nascido no Porto em 1937.
O livro traz um prefácio do crítico João Alexandre Barbosa, que mostra como a obra de Pimenta se inscreve na linhagem dos "cantares de escárnio e maldizer, que sempre ressurgem nos melhores momentos da tradição da poesia em língua portuguesa, aí se incluindo a brasileira, desde um Gregório de Matos até um Oswald de Andrade".
Em "Ado Silêncio", encontramos uma poética que mobiliza a invenção formal para romper não apenas com ditames estilísticos, mas com o marasmo mental coagulado em fórmulas literárias e no cultivo da tradição (há toda uma seção do livro dedicada aos discursos da nacionalidade, essa obsessão com a "identidade" que catalisa portugueses e brasileiros).
De certo modo, Pimenta é uma resposta ao caráter supostamente apolítico das vanguardas do pós-guerra. Ele faz uma poesia do "significante", da concretude da palavra. Mas os signos que elege são sempre índices do autorismo e do conservadorismo lusotropical, como encontramos em um poema epigramático como "O Inverso e Vice-Versa":
"cada cabeça sua sentença/ diz o condenado cuspindo no chão/ cada sentença sua cabeça/ diz o carrasco cuspindo nas mãos".

Happenings
Um outro aspecto do livro são os "happenings" de Pimenta. Depois de passar anos lecionando na Alemanha, por causa da ditadura salazarista, o escritor marcou seu retorno a Portugal com uma série de intervenções públicas.
Em 1977, ficou exposto durante duas horas numa jaula do Palácio dos Chimpanzés do Jardim Zoológico de Lisboa registrando a reação do público. O resultado é uma sucessão hilariante de mais de 200 frases transcritas na seção "Vox Populi Vox Dei":
"Ó pá, anda cá ver isto! Aqui o macaco é um homem"; "Se calhar é tarado sexual"; "É um homem, mas deve ser uma espécie rara"; "Quem vai reagir mal são os católicos: isto quer dizer que o homem descende do macaco"; "Já há portugueses enjaulados? Já não servem as cadeias?".
Mas o lado anedótico de Pimenta não deve nos enganar. Sua obra ensaística ("O Silêncio dos Poetas", "A Magia que Tira os Pecados do Mundo") revela um autor que concebe a literatura como uma gnose e dialoga com autores como Brice Parain, Heidegger e Adorno.
Sua erudição, porém, está a serviço do erotismo, do anticlericalismo e da crítica social. Nesse sentido, o mais antiportuguês dos escritores portugueses é um anarquista que usa todos os meios possíveis para dar corpo a uma dessacralização radical da poesia, da arte, da cultura, da vida.
Finalmente, seria preciso dizer que a singularidade de "Ado Silêncio" também diz respeito à forma de comercialização. Publicado pelo selo Odradek, o livro resgata uma antiga prática editorial: a subscrição.
Antes de lançar o título em livrarias, a editora o oferece aos leitores interessados, que pagam por antecipação. Com isso, os editores minimizam os riscos da empreitada; os leitores, em contrapartida, garantem seu exemplar num mercado em que livros de poesia costuma ter tiragens baixíssimas.
As subscrições podem ser feitas pelo e-mail fweintraub@uol.com.br ou pelo tel. 0/xx/11/4438-4358.


Ado Silêncio
    
Autor: Alberto Pimenta
Editora: Odradek
Quanto: R$ 25 (144 págs.)


Texto Anterior: Vou de táxi: Eles usam black-tie
Próximo Texto: Entrelinhas: 52 mil livros mais caros
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.