UOL


São Paulo, sábado, 25 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"AQUELE RAPAZ"

Romance de 1990 do crítico e cineasta é reeditado e vem acompanhado de posfácio de Roberto Schwarz

Bernardet faz texto compacto, negro e polido

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Estamos nas vésperas de Natal, no interior da França, pouco depois da Segunda Guerra. O pai chama os filhos e mostra-lhes a surpresa que está reservada para a mãe deles: um carro, novo em folha, com o qual irão fazer uma viagem a Paris. O importante é que a mãe não saiba de nada. Jean-Claude Bernardet continua:
"Dia de Natal, já quase noite, o carro estava no pátio. Meu irmão e eu subimos. Algum empregado abriu o imenso portão de ferro. O carro passou. Minha mãe estava exatamente na fronteira entre o pátio e a calçada. Lágrimas lhe escorriam pela face. Quando percebi que ela chorava? Nesse exato momento? Acho que não (...) Mais tarde? Muito mais tarde? Mas o significado da situação só bem depois entendi. Pela janela traseira do carro, minha mãe afastava-se, imóvel, ereta, junto ao portão ainda aberto, na noite. Foi a última vez que vimos nossa mãe, oficialmente".
De uma hora para outra, caberá aos meninos aceitar a amante do pai -a quem deverão chamar de "mamãe"- e, pouco tempo mais tarde, terão de adaptar-se a um novo país, o Brasil, aonde Bernardet chegou ainda criança.
O episódio do Natal é talvez o mais marcante de "Aquele Rapaz", mas não o único em que experiências de desamparo são narradas de forma simples, breve e austera, sem o menor laivo de autocomiseração e apelo emocional.
O título do livro é enigmático. Lemos nas primeiras páginas da narrativa que "aquele rapaz" era um colega de escola. O narrador se pergunta: "teria sido um dos amigos de maior importância de minha vida? É possível, sem que tivéssemos percebido, ou admitido". Poucas linhas adiante, já não se fala mais dele.
Assim como a mãe abandonada pelo pai, todos os personagens evadem-se, estão de passagem, subtraem-se do livro; o mesmo acontece com os diversos episódios do livro e com a própria temática homossexual, que embora recorrente não recebe homenagens especiais ao longo do texto.
Durante boa parte do livro, o narrador é inconsciente de sua própria sexualidade e do desejo que desperta nos outros; ele parece operar assim também com o leitor, a quem atrai sem fazer nenhum movimento nesse sentido.
O tom de Bernardet é o de alguém que fala de um lugar distante, cercado de vazios, preso a uma solidão orgulhosa e irremediável. Cada episódio -uma ida à praia, uma briga com o irmão, um corte de cabelo imposto pela madrasta- se isola, apartado do que veio antes. Os incidentes aparecem sem muita sequência; mas não é o princípio da livre associação que organiza o livro. Não se trata de memórias que fluem naturalmente: pouco a pouco, uma série de simetrias entre episódios e personagens sugere que o texto vai além do autobiográfico.
A tentativa de suicídio de um personagem ecoa na de outro; casais de amigos esquisitos, histórias de cachorros, aulas de piano se duplicam a uma distância de várias páginas uns dos outros. Quando pequeno, o narrador era encarregado de coçar as pernas da cozinheira- depois, é o pai quem lhe faz cócegas que o incomodam insuportavelmente.
Outra simetria ocorre em momento decisivo do livro. Em Argel, um rapaz tenta roubar do narrador o relógio de pulso; acabam tornando-se namorados. Haverá também um relógio de pulso no adeus do narrador ao pai moribundo. O pai entrega-lhe o relógio, que ele usará no pulso direito, como uma viúva que, depois da morte do marido, usa duas alianças de casamento... e ficamos pensando se "aquele rapaz", antes o amigo da escola, não é agora também o pai, ou melhor, o pai visto no passado, pelos olhos de uma mãe ausente...
Mas o mundo freudiano do inconsciente, do desejo, do prazer, encontra pouco espaço neste "récit" enclausurado e clássico. Num ajuste de contas consigo mesmo, e com o passado familiar, predomina a simetria e o rigor com que o narrador avalia as espantosas passagens de incompreensão de que foi objeto; e é isso o que faz do livro de Bernardet, nas suas 70 e poucas páginas, um texto compacto, negro e polido em que a dor de cada um de nós poderá também se espelhar. O posfácio de Roberto Schwarz é outra obra-prima.


Aquele Rapaz
    
Autor: Jean-Claude Bernardet
Posfácio: Roberto Schwarz
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 24 (89 págs.)



Texto Anterior: "Pela bandeira do paraíso": Extremismo religioso explica episódios bizarros
Próximo Texto: "Mongólia": Verdade do romance está em dar forma à incomunicabilidade
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.