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"AQUELE RAPAZ"
Romance de 1990 do crítico e cineasta é reeditado e vem acompanhado de posfácio de Roberto Schwarz
Bernardet faz texto compacto, negro e polido
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Estamos nas vésperas de Natal, no interior da França,
pouco depois da Segunda Guerra.
O pai chama os filhos e mostra-lhes a surpresa que está reservada
para a mãe deles: um carro, novo
em folha, com o qual irão fazer
uma viagem a Paris. O importante
é que a mãe não saiba de nada.
Jean-Claude Bernardet continua:
"Dia de Natal, já quase noite, o
carro estava no pátio. Meu irmão
e eu subimos. Algum empregado
abriu o imenso portão de ferro. O
carro passou. Minha mãe estava
exatamente na fronteira entre o
pátio e a calçada. Lágrimas lhe escorriam pela face. Quando percebi que ela chorava? Nesse exato
momento? Acho que não (...)
Mais tarde? Muito mais tarde?
Mas o significado da situação só
bem depois entendi. Pela janela
traseira do carro, minha mãe afastava-se, imóvel, ereta, junto ao
portão ainda aberto, na noite. Foi
a última vez que vimos nossa
mãe, oficialmente".
De uma hora para outra, caberá
aos meninos aceitar a amante do
pai -a quem deverão chamar de
"mamãe"- e, pouco tempo mais
tarde, terão de adaptar-se a um
novo país, o Brasil, aonde Bernardet chegou ainda criança.
O episódio do Natal é talvez o
mais marcante de "Aquele Rapaz", mas não o único em que experiências de desamparo são narradas de forma simples, breve e
austera, sem o menor laivo de autocomiseração e apelo emocional.
O título do livro é enigmático.
Lemos nas primeiras páginas da
narrativa que "aquele rapaz" era
um colega de escola. O narrador
se pergunta: "teria sido um dos
amigos de maior importância de
minha vida? É possível, sem que
tivéssemos percebido, ou admitido". Poucas linhas adiante, já não
se fala mais dele.
Assim como a mãe abandonada
pelo pai, todos os personagens
evadem-se, estão de passagem,
subtraem-se do livro; o mesmo
acontece com os diversos episódios do livro e com a própria temática homossexual, que embora
recorrente não recebe homenagens especiais ao longo do texto.
Durante boa parte do livro, o
narrador é inconsciente de sua
própria sexualidade e do desejo
que desperta nos outros; ele parece operar assim também com o
leitor, a quem atrai sem fazer nenhum movimento nesse sentido.
O tom de Bernardet é o de alguém que fala de um lugar distante, cercado de vazios, preso a uma
solidão orgulhosa e irremediável.
Cada episódio -uma ida à praia,
uma briga com o irmão, um corte
de cabelo imposto pela madrasta- se isola, apartado do que veio
antes. Os incidentes aparecem
sem muita sequência; mas não é o
princípio da livre associação que
organiza o livro. Não se trata de
memórias que fluem naturalmente: pouco a pouco, uma série de simetrias entre episódios e personagens sugere que o texto vai
além do autobiográfico.
A tentativa de suicídio de um
personagem ecoa na de outro; casais de amigos esquisitos, histórias de cachorros, aulas de piano
se duplicam a uma distância de
várias páginas uns dos outros.
Quando pequeno, o narrador era
encarregado de coçar as pernas da
cozinheira- depois, é o pai quem
lhe faz cócegas que o incomodam
insuportavelmente.
Outra simetria ocorre em momento decisivo do livro. Em Argel, um rapaz tenta roubar do narrador o relógio de pulso; acabam
tornando-se namorados. Haverá
também um relógio de pulso no
adeus do narrador ao pai moribundo. O pai entrega-lhe o relógio, que ele usará no pulso direito,
como uma viúva que, depois da
morte do marido, usa duas alianças de casamento... e ficamos pensando se "aquele rapaz", antes o
amigo da escola, não é agora também o pai, ou melhor, o pai visto
no passado, pelos olhos de uma
mãe ausente...
Mas o mundo freudiano do inconsciente, do desejo, do prazer,
encontra pouco espaço neste "récit" enclausurado e clássico. Num
ajuste de contas consigo mesmo, e
com o passado familiar, predomina a simetria e o rigor com que o
narrador avalia as espantosas passagens de incompreensão de que
foi objeto; e é isso o que faz do livro de Bernardet, nas suas 70 e
poucas páginas, um texto compacto, negro e polido em que a
dor de cada um de nós poderá
também se espelhar. O posfácio
de Roberto Schwarz é outra obra-prima.
Aquele Rapaz
Autor: Jean-Claude Bernardet
Posfácio: Roberto Schwarz
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 24 (89 págs.)
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