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São Paulo, sábado, 25 de outubro de 2003

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"MONGÓLIA"

Verdade do romance está em dar forma à incomunicabilidade

COLUNISTA DA FOLHA

"O passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado." A frase é de Italo Calvino, em "As Cidades Invisíveis", mas caberia perfeitamente em "Mongólia", novo romance do colunista da Folha Bernardo Carvalho.
Existe um paralelismo latente entre as duas obras. No livro de Calvino, o viajante italiano Marco Polo descreve suas viagens pela China ao imperador mongol Kublai Khan; no livro de Carvalho, há o relato de uma viagem que começa na China e penetra na Mongólia. Porém, onde Calvino é cerebral, geométrico (suas cidade invisíveis são dispostas segundo uma combinação matemática), Carvalho é intenso, ambíguo: sua Mongólia é uma terra de estranhamentos, onde "a coerência parece só ter efeito retroativo". A aproximação entre os dois escritores, portanto, pode ressaltar o complexo trabalho ficcional que lateja sob uma trama que, na superfície, é "detetivesca".
O livro tem três níveis narrativos. O narrador propriamente dito é um ex-embaixador brasileiro na China, que conta a história de uma investigação diplomática sobre o desaparecimento de um fotógrafo brasileiro no interior da Mongólia. A partir daí, surgem dois outros relatos: (1) as anotações de um cônsul escalado para encontrar o fotógrafo e (2) o diário do desaparecido.
Ao longo de todo o romance, o enredo parece convergir para o choque entre os códigos de países que estão na periferia do Ocidente e do Oriente. "Mongólia" está repleto de minuciosas descrições dos hábitos dos mongóis: as "iurtas" (barracas que servem de habitação para os povos nômades), a "paisagem lunar" das montanhas e estepes, os mosteiros budistas, o apego à religião como exercício de liberdade após a queda do comunismo.
Há um caráter etnográfico em "Mongólia". Mas, assim como em "Nove Noites" (seu romance anterior, sobre um antropólogo que se suicida no Brasil), o conflito de identidades é aqui a alegoria de um mal-estar mais visceral. Assim, os dois diários que dão corpo à narrativa são pontuados pela repulsa ao diverso, ao outro -e o leitor atento certamente ficará incomodado com a semelhança desses dois relatos, como se o escritor não tivesse conseguido criar dicções singulares para personagens diferentes.
Nas últimas páginas do romance, porém, tanto o narrador quanto o leitor descobrem com assombro que há uma relação de consanguinidade entre essas duas escritas e que, entre aquilo que é familiar, se interpõe uma distância ainda maior do que aquela que separa duas línguas estranhas.
"É como se todos mentissem e as mentiras fossem complementares", escreve o cônsul em seu diário. A própria narrativa de "Mongólia" é uma grande mentira. Carvalho nos leva até os montes Altai e nos hipnotiza com as obsessões do desaparecido, que viaja para fotografar criadores de renas e se perde na tentativa de achar os vestígios do Antibuda.
A verdade desse romance, porém, se encontra bem mais próxima: está no poder que a literatura tem de unificar a dispersão da experiência, dando forma e sentido à incomunicabilidade e ao estranhamento.
(MANUEL DA COSTA PINTO)


Mongólia
    
Autor: Bernardo Carvalho
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29,50 (188 págs.)



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