São Paulo, segunda-feira, 25 de outubro de 2004

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CINEMA/CRÍTICA

Kevin Smith revela face conservadora em "Menina dos Olhos"

BRUNO YUTAKA SAITO
DA REDAÇÃO

É consenso dizer que a vida de um homem divide-se basicamente entre antes e depois da paternidade -para quem decide ter filhos, claro. O que ninguém chega a um acordo é se um rebento garante a maturidade de sujeitos que até ontem não sabiam lavar as próprias cuecas.
Também não sabemos se Kevin Smith, de "Menina dos Olhos", freqüenta lavanderias, mas é certo que ele tinha o hábito de atolar seus filmes com as mais variadas referências adquiridas na adolescência, de HQs a piadas sujas de fundo de sala de aula.
Ele também casou e teve filho. E parece um tanto perdido na busca pela maturidade, a julgar por "Menina", uma tentativa de refletir essa nova fase do diretor.
O filme conta a história de Ollie (Ben Affleck), poderoso relações-públicas de uma grande gravadora, homem deslumbrado com o poder e ternos bem cortados. Sua vida muda quando se casa com Gertrude (Jennifer Lopez) e fica sabendo que será pai em breve; sua vida desmorona quando ela morre no parto, obrigado-o a cuidar sozinho de sua filha.
Mas as coisas vão piorar ainda mais. Em um acesso de raiva, irá ridicularizar um cliente, Will Smith, em plena coletiva de imprensa, o que irá encerrar sua vida de carros luxuosos e badalações. A saída será abandonar Manhattan e voltar à casa do pai, outro viúvo, em uma pacata Nova Jersey, onde tentará criar sua filha.
Instala-se o conflito central: enquanto Affleck passa sete anos numa espécie de ostracismo na cidadezinha e sonha em voltar à ativa, sua filha vai crescendo, apegada aos valores locais.
A partir daí, Smith esgota inúmeros clichês de comédias dramáticas sobre o tema -sim, há a inevitável seqüência final em que Affleck luta para chegar a tempo para assistir a uma apresentação musical de sua filha na escola.
Retirando as situações esquemáticas, não resta muita coisa, o que diz muita coisa a respeito do diretor. Alçado à condição de gênio do cinema independente muito cedo, com seu "O Balconista" (1994), Smith retirava sua força em diálogos ágeis, inundados de citações ao mundo pop. Ao contrário de Quentin Tarantino, que cerca-se de todos os clichês possíveis e consegue revertê-los em uma linguagem própria, Smith apenas soa como um mero reprodutor de fórmulas -diga-se que agora, pela primeira vez ficam de fora seus personagens onipresentes Jay e Silent Bob, responsáveis pelas cenas mais "adultas" de seus filmes anteriores de Smith.
Quando seu dito estilo aparece, há a possibilidade de considerar todo esse melodrama pura sátira velada. Não é o caso. A situação surge em um diálogo sobre abstinência sexual e masturbação conduzido por Maya (Liv Tyler), atendente de videolocadora que vai balançar o coração do viúvo.
Não é nenhum segredo que Smith tirou boa parte de sua formação das prateleiras de videolocadoras. Tyler será o elo de Smith/ Affleck com essa volta ao passado, e é a partir dela que uma nova vida será criada. É como se dissesse que você pode se tornar adulto, ter uma carreira e filhos, mas nunca se verá livre de suas raízes. O que não deixa de ser uma surpresa um tanto conservadora para um diretor que já causou tanto barulho no passado.


Menina dos Olhos
Jersey Girl
  
Direção: Kevin Smith
Produção: EUA, 2004
Com: Ben Affleck, Liv Tyler, Raquel Castro
Onde: em cartaz nos cines Bristol, Interlagos, Paulista e circuito



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