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"MANDERLAY"
Von Trier constrói teorema cruel sobre racismo
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Uma ousadia formal, quando
se repete, deixa de ser ousadia, transformando-se, no melhor
dos casos, em estilo, e, no pior, em
fórmula. Ainda é cedo para saber
qual é o caso do cineasta dinamarquês Lars von Trier, que em
"Manderlay", a exemplo do que
fizera em "Dogville", rompe com
a ambientação realista, encenando sua história num enorme palco vazio, em que os vários ambientes não passam de marcações
inscritas no chão.
A esse cenário de teatro moderno corresponde uma abordagem
dramática implacavelmente lógica e provocadora, como nas melhores peças de Brecht. Trata-se,
de certo modo, de uma fábula
sem moral, ou melhor, de um teorema que se dedica a destruir de
modo sistemático as várias "morais" pré-fabricadas.
Se em "Dogville" o objeto da reflexão era a violência endêmica da
sociedade americana, em "Manderlay" -a segunda parte de sua
trilogia sobre os EUA, toda filmada na Europa-, o foco se fecha
sobre outro tema espinhoso, a herança escravista e tudo o que ela
implica de dificuldade de entendimento entre brancos e negros.
Grace, a bem-intencionada filha
de gângster que no primeiro filme
era interpretada por Nicole Kidman, reaparece em "Manderlay"
na pele da igualmente talentosa
Bryce Dallas Howard. Viajando
com o pai (desta vez Willem Dafoe, em vez de James Caan) pelo
Alabama, ela se depara com uma
fazenda que, em pleno ano de
1933, ainda mantém as relações
escravistas abolidas 70 anos antes.
Indignada, a moça resolve ficar
no local e impor à força a liberdade na fazenda, com a ajuda de um
bando de capangas do pai. Seu
projeto vai além da abolição do
trabalho escravo. Ela quer fazer
da propriedade um modelo de
democracia e autogestão.
O desastre da empreitada tem a
ver, por um lado, com a dificuldade de modificar a mentalidade arraigada entre os próprios ex-escravos, que eram mantidos submissos, nos velhos tempos, por
um intrincado sistema que os dividia em tipos que iam do negro
bonachão ao rebelde de sangue
nobre, passando pelo arruaceiro,
pelo apático etc.
Mas os tropeços de Grace estão
ali também para afirmar a convicção do diretor de que qualquer
idéia de missão, de catequese, está
destinada ao fracasso.
Em sua jornada, Grace oscila
entre dois pólos: o velho Wilhelm
(Danny Glover), que parece ser o
ex-escravo mais sensato da comunidade, e o irascível Timothy
(Isaach de Bankolé), por quem ela
sente uma forte atração.
Ambos se revelarão diferentes
do que pareciam, como tudo nesta diabólica sátira feita para desestabilizar qualquer conceito tranqüilizador que possamos ter sobre a questão racial.
Manderlay
Direção: Lars von Trier
Quando: amanhã, às 19h, no Frei
Caneca Unibanco Arteplex; e dia 31, às 21h30, no Metrô Santa Cruz
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