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CONTARDO CALLIGARIS
"Infiel'
A tolerância não impede
de reconhecer e recusar a diferença quando ela é
inimiga de nossos valores
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A COMPANHIA das Letras acaba
de publicar a autobiografia de
Ayaan Hirsi Ali, "Infiel - A
História de Uma Mulher que Desafiou o Islã".
Hirsi Ali nasceu na Somália (país
muçulmano) em 1969, viveu o horror da guerra civil e da luta entre clãs
que levaram o país da pobreza à miséria, passou partes da infância e da
adolescência na Arábia Saudita e no
Quênia e, enfim, adulta, fugiu para
o Ocidente. Na Holanda, ela se tornou cidadã e, logo depois, foi eleita
deputada. Pela sua história e pela
coragem de suas palavras, ela continua sendo alvo de um fanatismo assassino.
O livro, além de tocante, é imprescindível para quem queira, hoje,
perguntar: "Vigia, como está a
noite?".
As primeiras 300 páginas tratam
da progressiva metamorfose de Ali:
uma menina definida pela sua ascendência e pela obediência aos homens e ao Alcorão se transforma
numa jovem pessoa atormentada
por dúvidas sobre sua fé e pela vontade de escutar seus sentimentos
e de escolher livremente seus objetos de amor.
Essas páginas deveriam estar nas
bibliografias de introdução à antropologia cultural: elas explicam perfeitamente quem somos nós, ocidentais. Na história da jovem somali, a oposição à autoridade tradicional do clã e do texto sagrado não está nos grandes textos do Ocidente
-está nos romances.
Fragilidade e grandeza de nossa
cultura: a liberdade do indivíduo
moderno é, antes de mais nada, liberdade de amar e de romancear o
amor. "Romeu e Julieta" e Barbara
Cartland nos definem melhor do
que "O Contrato Social".
Li as últimas 200 páginas do livro
na noite de sábado, sem parar, madrugada adentro. Nelas, Ali, ao contar as peripécias de sua vida na Holanda, expõe sua crítica do Islã.
Depois de 11 de setembro de 2001,
talvez você tenha lido "Choque de
Civilizações?", de Samuel Huntington, e, como eu, tenha resistido à
idéia de que o terceiro milênio seja
destinado a encenar um conflito cultural sangrento entre o Ocidente e o
Islã. Talvez você, como eu, sem examinar de perto os textos e os fatos,
tenha se juntado ao coro da tolerância e à visão otimista do Islã paz-e-amor, convencido de que aceitar
a diferença seja (como é, de fato)
uma prerrogativa crucial e gloriosa
de nossa cultura.
Só a tolerância -você pode ter
pensado, como eu- permitirá a integração que confirmará a humanidade comum de todos, realizando o
sonho ocidental moderno.
Pois bem, Ali pensa diferente.
Para ela, o fundamentalismo e o
terrorismo islâmicos de hoje não se
fundam numa distorção do Islã, eles
estão inscritos na letra do Alcorão e
do Hadith.
Só será possível evitar um embate
frontal se o mundo islâmico passar
por uma revolução interna comparável com a que sacudiu o cristianismo no começo da modernidade,
quando o indivíduo (com sua liberdade e seu foro íntimo) se tornou
um valor bem mais importante do
que a instituição e o texto religiosos.
Portanto, para Ali, sobretudo nos
lugares de maior fricção entre o Islã
e o Ocidente, como na Europa, a estratégia de uma convivência possível não passa pela simples tolerância, mas pela exigência ativa de uma
integração dos imigrantes na cultura para onde se mudaram ou fugiram. Essa exigência inclui a capacidade de recusar a diferença quando
ela for inimiga de nossos valores.
Não há espaço, no Ocidente, para a
submissão das mulheres, o ostracismo das minorias sexuais, o poder
patriarcal indiscriminado e, sobretudo, não há espaço para a confusão
entre religião e Estado de direito.
Theo Van Gogh, holandês, dirigiu
um documentário, escrito por Ali,
sobre a submissão da mulher no Islã. Ele foi assassinado e degolado por
um fundamentalista islâmico, que
cravou no peito de sua vítima uma
mensagem para Ali, perguntando se
ela estava disposta a morrer por suas
idéias como ele, o assassino, estava
pronto a se sacrificar pelas suas.
É um argumento freqüente nos
comunicados exaltados dos terroristas: o Ocidente estaria fadado a
desaparecer porque preza a vida do
indivíduo.
Ora, Van Gogh, diante de seu assassino, antes de ser morto, perguntou: "Será que a gente não pode conversar?". O assassino deve ter pensado que se tratava de mais uma demonstração da fraqueza e da covardia ocidentais. Ele se enganou. Era a
maior demonstração de fé nos valores do Ocidente e, portanto, de força.
ccalligari@uol.com.br
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