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LIVROS/LANÇAMENTOS
"BANDEIRAS PÁLIDAS"
Autor faz registro contra barbárie
ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
A literatura talvez não seja o meio certo para isso. E,
no entanto, a literatura vem lutando consigo mesma por conta disso há mais de meio século. Amparada num vasto repertório de filmes, fotografias, reportagens, ensaios e poemas, até a literatura
mais popular abre, agora, acesso a
violências que não podem ser
narradas, cruezas mais reais do
que a realidade, apagamentos tão
completos e ao mesmo tempo tão
concretos do humano que a linguagem dá de si e cai no silêncio.
No caso exemplar de Michael
Ondaatje (1943), o romance torna-se um campo de forças, onde
vai-se medir a resistência das formas tradicionais contra esse conteúdo irrepresentável. Sua virtude
e sua fraqueza é fazer do sentimento, afinal, o fiel da balança.
O novo e já premiado romance
"Bandeiras Pálidas" (recebeu o
canadense Giller e o francês Medicis) tem lugar no Sri Lanka, país
natal do autor. A época é 1990,
momento em que três grupos políticos brigavam entre si, com
consequências nefastas. Ao norte,
separatistas de etnia tamil; ao sul,
forças antigovernistas, contra a
concessão de acordos territoriais
às minorias; e, por toda a parte, o
governo, supostamente empenhado em equilibrar os conflitos,
mas pronto para mobilizar esquadrões da morte, num ambiente
que lembra as piores ditaduras latino-americanas da década de 70.
É para este cenário que retorna
a arqueóloga forense Anil Tissera,
a serviço de uma organização de
direitos humanos suíça. Radicada
há muito no Ocidente (como o
autor, que mora no Canadá), seu
retorno tem peso emocional, tanto quanto político. Examinar cadáveres e pesquisar ossadas é só
um lado da trama, que para ela se
multiplica em dezenas de episódios sobre a identidade perdida.
Memória e história vão rimando ao longo do livro, que é previsível mas virtuosístico no alinhamento desses temas com os da
própria escrita. A arqueologia é
"métier" e metáfora. O presente
está sendo constantemente enterrado e o passado teimosamente
desenterrado.
Teimosamente e literalmente,
quando o que se está buscando
são ossos de pessoas assassinadas.
A missão da arqueóloga é exatamente esta: identificar um esqueleto ao menos, que seja, capaz de
provar para o resto do mundo
que o governo tem sangue nas
mãos. Parece impossível. Como
se acha uma ossada, desaparecida
no chão de um país inteiro? Mesmo achando, como saber de
quem eram esses ossos, como dar
nome e passado ao que hoje é um
fragmento mineral na terra?
Um dos fascínios do livro é a
aventura forense, narrada em ritmo de romance policial. As ambições de Ondaatje vão mais longe,
mas dependem, em certa medida,
deste pulso clássico da ficção popular. Que observações sobre as
pupas das cigarras possam levar à
conclusão de que um corpo foi
enterrado em dois lugares distintos, sucessivamente, ou que um
alargamento na tíbia possa sugerir a profissão de um morto desconhecido são detalhes que conferem ao texto não apenas a autenticidade de documentário,
mas uma dose de pitoresquismo
profissional, que faz contraponto
com o que há de pitoresco na paisagem geográfica e humana.
O livro é polifônico: combina
denúncia e testemunho com tramas afetivas, orientadas segundo
um padrão que vem da literatura
de mistério e das grandes narrativas do cinema comercial.
Que isso não seja mal entendido: dentro do seu registro -a literatura média, avessa tanto ao
populismo quanto à alta cultura- o romance de Ondaatje é sofisticado, composto com enorme
controle e evidente sinceridade de
propósito. Mas que isto também
não seja mal compreendido: estamos nas águas do convencional,
que a espontaneidade da prosa,
por si, não é capaz de vencer, nem
muito menos a ideologia, por
mais bem intencionada que seja.
O pior que se pode dizer do livro
é que corteja o sentimental mas é
preciso reconhecer que isso se dá
num contexto em que a força
emotiva parece a última reserva
de fibra possível.
Há personagens e cenas memoráveis. Em particular, os médicos,
jogados num inferno de urgências
e dilacerações. É sobre estas figuras, atendendo uma multiplicação infinita de vítimas, que tomba
o lastro humano da barbárie. Um
papel de destaque fica reservado,
também, para o artesão Ananda,
que pinta olhos em esculturas do
Buda. Ele é um entre tantos personagens cuja vida, neste país tão estranho e tão próximo, não tem
mais sentido senão o da perda, do
lamento, e da preservação de uma
outra vida nessa que resiste e fica.
A medicina como emblema da
capacidade de cuidar de outra
pessoa é um dos temas que fazem
eco ao livro anterior de Ondaatje,
"O Paciente Inglês". Cavernas e
desertos e música e chuva também; mas o enfrentamento político, agora, é muito mais direto, e o
livro arrisca tudo na crença humanista de um destino comum,
sem fronteiras. "Uma vítima fala
por muitas vítimas", aprendeu
Anil com um professor. "Um livro fala por muitos", poderia ser o
mote desta ficção, que constrói
mulheres e homens para mover
mulheres e homens, contra homens e mulheres "formados pela
história" -repetida não como
farsa, mas como tragédia mesmo.
Será justo criticar um livro corajoso até em suas ingenuidades?
Há algo, talvez, de decadentismo
nesta nova arte engajada, uma espécie de kitsch político, ou novo
gótico de esquerda. É um estilo da
fantasmagoria e do grotesco, que
se deixa, afinal, diminuir pelas
contingências de corações partidos. Mas a aposta é clara: humanizar leitores, pelas vias do afeto,
para reagir contra as violações
mais básicas da humanidade. Que
cada um traduza depois, com as
devidas acomodações, as guerrilhas do Sri Lanka para a paisagem
mais imediata, ao redor.
O resultado pode frustrar uma
platéia para quem o assunto é sério demais para as facilidades da
representação. Mas será vastamente lido, mundo afora, como
ensinamento e chamado, e o que
não seria justo seria menosprezar
essa potência civilizadora. Ela anima uma tarefa milenar da literatura, e renova o ofício do escritor,
como testemunha e consciência
dos tempos.
Bandeiras Pálidas
Anil's Ghost
Autor: Michael Ondaatje
Tradução: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29,50 (352 págs.)
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