São Paulo, sábado, 25 de novembro de 2000

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"BANDEIRAS PÁLIDAS"
Autor faz registro contra barbárie

ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A literatura talvez não seja o meio certo para isso. E, no entanto, a literatura vem lutando consigo mesma por conta disso há mais de meio século. Amparada num vasto repertório de filmes, fotografias, reportagens, ensaios e poemas, até a literatura mais popular abre, agora, acesso a violências que não podem ser narradas, cruezas mais reais do que a realidade, apagamentos tão completos e ao mesmo tempo tão concretos do humano que a linguagem dá de si e cai no silêncio.
No caso exemplar de Michael Ondaatje (1943), o romance torna-se um campo de forças, onde vai-se medir a resistência das formas tradicionais contra esse conteúdo irrepresentável. Sua virtude e sua fraqueza é fazer do sentimento, afinal, o fiel da balança.
O novo e já premiado romance "Bandeiras Pálidas" (recebeu o canadense Giller e o francês Medicis) tem lugar no Sri Lanka, país natal do autor. A época é 1990, momento em que três grupos políticos brigavam entre si, com consequências nefastas. Ao norte, separatistas de etnia tamil; ao sul, forças antigovernistas, contra a concessão de acordos territoriais às minorias; e, por toda a parte, o governo, supostamente empenhado em equilibrar os conflitos, mas pronto para mobilizar esquadrões da morte, num ambiente que lembra as piores ditaduras latino-americanas da década de 70.
É para este cenário que retorna a arqueóloga forense Anil Tissera, a serviço de uma organização de direitos humanos suíça. Radicada há muito no Ocidente (como o autor, que mora no Canadá), seu retorno tem peso emocional, tanto quanto político. Examinar cadáveres e pesquisar ossadas é só um lado da trama, que para ela se multiplica em dezenas de episódios sobre a identidade perdida.
Memória e história vão rimando ao longo do livro, que é previsível mas virtuosístico no alinhamento desses temas com os da própria escrita. A arqueologia é "métier" e metáfora. O presente está sendo constantemente enterrado e o passado teimosamente desenterrado.
Teimosamente e literalmente, quando o que se está buscando são ossos de pessoas assassinadas. A missão da arqueóloga é exatamente esta: identificar um esqueleto ao menos, que seja, capaz de provar para o resto do mundo que o governo tem sangue nas mãos. Parece impossível. Como se acha uma ossada, desaparecida no chão de um país inteiro? Mesmo achando, como saber de quem eram esses ossos, como dar nome e passado ao que hoje é um fragmento mineral na terra?
Um dos fascínios do livro é a aventura forense, narrada em ritmo de romance policial. As ambições de Ondaatje vão mais longe, mas dependem, em certa medida, deste pulso clássico da ficção popular. Que observações sobre as pupas das cigarras possam levar à conclusão de que um corpo foi enterrado em dois lugares distintos, sucessivamente, ou que um alargamento na tíbia possa sugerir a profissão de um morto desconhecido são detalhes que conferem ao texto não apenas a autenticidade de documentário, mas uma dose de pitoresquismo profissional, que faz contraponto com o que há de pitoresco na paisagem geográfica e humana.
O livro é polifônico: combina denúncia e testemunho com tramas afetivas, orientadas segundo um padrão que vem da literatura de mistério e das grandes narrativas do cinema comercial.
Que isso não seja mal entendido: dentro do seu registro -a literatura média, avessa tanto ao populismo quanto à alta cultura- o romance de Ondaatje é sofisticado, composto com enorme controle e evidente sinceridade de propósito. Mas que isto também não seja mal compreendido: estamos nas águas do convencional, que a espontaneidade da prosa, por si, não é capaz de vencer, nem muito menos a ideologia, por mais bem intencionada que seja.
O pior que se pode dizer do livro é que corteja o sentimental mas é preciso reconhecer que isso se dá num contexto em que a força emotiva parece a última reserva de fibra possível.
Há personagens e cenas memoráveis. Em particular, os médicos, jogados num inferno de urgências e dilacerações. É sobre estas figuras, atendendo uma multiplicação infinita de vítimas, que tomba o lastro humano da barbárie. Um papel de destaque fica reservado, também, para o artesão Ananda, que pinta olhos em esculturas do Buda. Ele é um entre tantos personagens cuja vida, neste país tão estranho e tão próximo, não tem mais sentido senão o da perda, do lamento, e da preservação de uma outra vida nessa que resiste e fica.
A medicina como emblema da capacidade de cuidar de outra pessoa é um dos temas que fazem eco ao livro anterior de Ondaatje, "O Paciente Inglês". Cavernas e desertos e música e chuva também; mas o enfrentamento político, agora, é muito mais direto, e o livro arrisca tudo na crença humanista de um destino comum, sem fronteiras. "Uma vítima fala por muitas vítimas", aprendeu Anil com um professor. "Um livro fala por muitos", poderia ser o mote desta ficção, que constrói mulheres e homens para mover mulheres e homens, contra homens e mulheres "formados pela história" -repetida não como farsa, mas como tragédia mesmo.
Será justo criticar um livro corajoso até em suas ingenuidades? Há algo, talvez, de decadentismo nesta nova arte engajada, uma espécie de kitsch político, ou novo gótico de esquerda. É um estilo da fantasmagoria e do grotesco, que se deixa, afinal, diminuir pelas contingências de corações partidos. Mas a aposta é clara: humanizar leitores, pelas vias do afeto, para reagir contra as violações mais básicas da humanidade. Que cada um traduza depois, com as devidas acomodações, as guerrilhas do Sri Lanka para a paisagem mais imediata, ao redor.
O resultado pode frustrar uma platéia para quem o assunto é sério demais para as facilidades da representação. Mas será vastamente lido, mundo afora, como ensinamento e chamado, e o que não seria justo seria menosprezar essa potência civilizadora. Ela anima uma tarefa milenar da literatura, e renova o ofício do escritor, como testemunha e consciência dos tempos.


Bandeiras Pálidas
Anil's Ghost
   
Autor: Michael Ondaatje Tradução: Paulo Henriques Britto Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 29,50 (352 págs.)




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