São Paulo, sábado, 25 de novembro de 2000

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RESENHA DA SEMANA
Transformista da infâmia

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Espécie irônica e irreverente de "O Médico e o Monstro", com inspiração em Arsène Lupin, "Memórias de um Rato de Hotel", do Dr. Antônio, é daquelas relíquias que fazem a alegria dos frequentadores de sebos: não bastasse ser um livro policial, o mistério já começa pela sua própria gênese.
Num dos raríssimos exemplares (1912, sem editora), que o pesquisador e bibliófilo Plínio Doyle achou há tempos em suas andanças pelos sebos cariocas, havia na página de rosto uma ousada e surpreendente observação manuscrita e assinada por Francisco Prisco, antigo colaborador da "Revista da Academia", a quem provavelmente pertencera o volume: "O autor deste livro é João do Rio".
Sem que haja comprovação, algumas coincidências e afinidades estilísticas incitam a suspeita levantada pela frase. É o que aponta o pesquisador João Carlos Rodrigues, autor de uma biografia e do catálogo bibliográfico de João do Rio, no posfácio da simpática edição agora publicada pela editora Dantes.
Célebre cronista da belle époque carioca, João do Rio -pseudônimo que consagrou o jornalista Paulo Barreto (1881-1921)- fez uma série de reportagens na Casa de Detenção, em 1905, para a "Gazeta de Notícias". Publicou no mesmo jornal, em 1908, um conto sobre um ladrão que roubava hóspedes de hotéis, tal como o Dr. Antônio -cognome mais conhecido do gaúcho Artur Antunes Maciel, cuja origem é, no mínimo, nebulosa. "Como era de seu estilo, João do Rio usava e abusava de ambiguidade e cinismo, misturando indiscriminadamente ficção e realidade, personagens reais e inventadas", escreve Rodrigues.
Em 1911, João do Rio publicou uma crônica em que narrava seu encontro com o Dr. Antônio na prisão: além de defendê-lo como "representativo do roubo inteligente" e de propor-lhe escrever suas memórias, exortava-o a fugir e continuar sendo o que era, porque "a regeneração passou de moda".
A simpatia era visível, assim como a identificação: "Ter pelo gatuno uma simpatia grande é fenômeno geral, principalmente quando o roubo não é contra nós", escreveu João do Rio. Antunes Maciel assumia falsas identidades para roubar, chegando a se hospedar em oito hotéis ao mesmo tempo, com oito nomes diferentes. Paulo Barreto, por sua vez, usou diversos pseudônimos antes de se impor como João do Rio. Em janeiro de 1912, as "Memórias de um Rato de Hotel" foram publicadas, inicialmente em forma de folhetim, pela "Gazeta de Notícias". João do Rio era diretor do jornal nessa época.
A conclusão a que chega João Carlos Rodrigues, no posfácio, é que o texto pode ter sido ditado pelo Dr. Antônio a João do Rio ou escrito a quatro mãos ou editado pelo cronista a partir de informações do ladrão. A dúvida sobre a autoria só reforça a essência do livro, fundado no princípio corrosivo de que a mentira é a base de tudo.
O Dr. Antônio é uma espécie de Ripley (o herói mitômano de Patricia Highsmith) "avant la lettre": "A mentira é a base da vida", diz. Só que sua afirmativa é conscientemente irônica e justifica o roubo como missão: "Nós a vemos através dos delegados, dos agentes, dos advogados. (...) Estas memórias não podem ter a preocupação de fazer romance. Contam a verdade. São quase uma enumeração seca de fatos da minha vida em que, confessando crimes, mostro como a Justiça é criminosa".
O Dr. Antônio está para Antunes Maciel assim como Mr. Hyde para o Dr. Jeckyll. Ele é uma fatalidade. Como o desejo, nada pode regenerá-lo. Sem o Dr. Antônio, Antunes Maciel seria uma carcaça sem vontade. Mas por mais que exiba a sua inteligência e a sua missão como "transformista da infâmia", dividindo-se em vários "eus" para roubar, tudo conspira para reduzi-lo a uma única identidade, bode expiatório de uma sociedade hipócrita: "Nada mais fácil do que roubar quando se é inteligente. E nada mais difícil e arriscado quando se toma essa profissão sem outro título. Porque com outro título quase nunca há o perigo da cadeia".


Memórias de um Rato de Hotel      Autor: Dr. Antônio
Editora: Dantes
Quanto: R$ 18 (291 págs.)




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