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RESENHA DA SEMANA
Transformista da infâmia
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Espécie irônica e irreverente de "O Médico e o Monstro", com inspiração em Arsène
Lupin, "Memórias de um Rato
de Hotel", do Dr. Antônio, é daquelas relíquias que fazem a alegria dos frequentadores de sebos: não bastasse ser um livro
policial, o mistério já começa
pela sua própria gênese.
Num dos raríssimos exemplares (1912, sem editora), que o
pesquisador e bibliófilo Plínio
Doyle achou há tempos em suas
andanças pelos sebos cariocas,
havia na página de rosto uma
ousada e surpreendente observação manuscrita e assinada por
Francisco Prisco, antigo colaborador da "Revista da Academia", a quem provavelmente
pertencera o volume: "O autor
deste livro é João do Rio".
Sem que haja comprovação,
algumas coincidências e afinidades estilísticas incitam a suspeita levantada pela frase. É o
que aponta o pesquisador João
Carlos Rodrigues, autor de uma
biografia e do catálogo bibliográfico de João do Rio, no posfácio da simpática edição agora
publicada pela editora Dantes.
Célebre cronista da belle époque carioca, João do Rio
-pseudônimo que consagrou
o jornalista Paulo Barreto (1881-1921)- fez uma série de reportagens na Casa de Detenção, em
1905, para a "Gazeta de Notícias". Publicou no mesmo jornal, em 1908, um conto sobre
um ladrão que roubava hóspedes de hotéis, tal como o Dr. Antônio -cognome mais conhecido do gaúcho Artur Antunes
Maciel, cuja origem é, no mínimo, nebulosa. "Como era de seu
estilo, João do Rio usava e abusava de ambiguidade e cinismo,
misturando indiscriminadamente ficção e realidade, personagens reais e inventadas", escreve Rodrigues.
Em 1911, João do Rio publicou
uma crônica em que narrava seu
encontro com o Dr. Antônio na
prisão: além de defendê-lo como "representativo do roubo
inteligente" e de propor-lhe escrever suas memórias, exortava-o a fugir e continuar sendo o que
era, porque "a regeneração passou de moda".
A simpatia era visível, assim
como a identificação: "Ter pelo
gatuno uma simpatia grande é
fenômeno geral, principalmente
quando o roubo não é contra
nós", escreveu João do Rio. Antunes Maciel assumia falsas
identidades para roubar, chegando a se hospedar em oito hotéis ao mesmo tempo, com oito
nomes diferentes. Paulo Barreto, por sua vez, usou diversos
pseudônimos antes de se impor
como João do Rio. Em janeiro
de 1912, as "Memórias de um
Rato de Hotel" foram publicadas, inicialmente em forma de
folhetim, pela "Gazeta de Notícias". João do Rio era diretor do
jornal nessa época.
A conclusão a que chega João
Carlos Rodrigues, no posfácio, é
que o texto pode ter sido ditado
pelo Dr. Antônio a João do Rio
ou escrito a quatro mãos ou editado pelo cronista a partir de informações do ladrão. A dúvida
sobre a autoria só reforça a essência do livro, fundado no
princípio corrosivo de que a
mentira é a base de tudo.
O Dr. Antônio é uma espécie
de Ripley (o herói mitômano de
Patricia Highsmith) "avant la
lettre": "A mentira é a base da vida", diz. Só que sua afirmativa é
conscientemente irônica e justifica o roubo como missão: "Nós
a vemos através dos delegados,
dos agentes, dos advogados. (...)
Estas memórias não podem ter a
preocupação de fazer romance.
Contam a verdade. São quase
uma enumeração seca de fatos
da minha vida em que, confessando crimes, mostro como a
Justiça é criminosa".
O Dr. Antônio está para Antunes Maciel assim como Mr.
Hyde para o Dr. Jeckyll. Ele é
uma fatalidade. Como o desejo,
nada pode regenerá-lo. Sem o
Dr. Antônio, Antunes Maciel seria uma carcaça sem vontade.
Mas por mais que exiba a sua inteligência e a sua missão como
"transformista da infâmia", dividindo-se em vários "eus" para
roubar, tudo conspira para reduzi-lo a uma única identidade,
bode expiatório de uma sociedade hipócrita: "Nada mais fácil
do que roubar quando se é inteligente. E nada mais difícil e arriscado quando se toma essa
profissão sem outro título. Porque com outro título quase nunca há o perigo da cadeia".
Memórias de um Rato de Hotel
Autor: Dr. Antônio
Editora: Dantes
Quanto: R$ 18 (291 págs.)
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