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São Paulo, terça-feira, 25 de novembro de 2003

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Salvem o cinema
(de autor)

Divulgação
Cena de "Glauber o Filme, Labirinto do Brasil", de Silvio Tendler, que integra a mostra competitiva do Festival de Brasília


No ano em que prevaleceu a marca pessoal, Festival de Brasília termina com público dividido

SILVANA ARANTES
ENVIADA ESPECIAL A BRASÍLIA

Na história do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (que anuncia nesta noite os vencedores de sua 36ª edição), 2003 será visto como o ano que colocou não os filmes, mas o público à prova.
Todos os longas-metragens inéditos apresentados em competição desde a última quarta-feira compartilham o rótulo de filmes de autor, uma expressão que designa diretores desobedientes e insubordinados às fórmulas de comprovada eficácia na comunicação com o público.
São seis os autores em disputa em Brasília: Carlos Reichenbach, 58 ("Garotas do ABC"), Julio Bressane, 57 ("Filme de Amor"), Maurice Capovilla, 67 ("Harmada"), Rogério Sganzerla, 58 ("O Signo do Caos"), Silvio Tendler, 53 ("Glauber o Filme, Labirinto do Brasil") e Sylvio Back, 65 ("Lost Zweig").
Foi distinta a reação da platéia para cada um dos filmes. Na projeção de "O Signo do Caos", o primeiro a ser apresentado, muitos deixaram a sala antes do fim. Os que permaneceram aplaudiram sem ênfase o longa em que Sganzerla reflete sobre as diversas formas de cerceamento à produção intelectual no Brasil.
Num diálogo-síntese do filme, um personagem diz a outro: "Todo brasileiro deveria ser proibido de existir". E ouve em resposta: "Não há necessidade. Já nascem punidos".
Antes de exibir seu "Filme de Amor", na sexta, Julio Bressane pediu "paciência e tolerância" à platéia. No dia seguinte, explicou, em entrevista, que se referia "ao ritmo do filme", fiel ao vagar exigido pela contemplação. "Filme de Amor" trata do sentimento amoroso, por meio de rituais eróticos de três personagens encerrados num casarão decadente no centro do Rio.
Nem todos atenderam o pedido de Bressane. Parte da platéia vaiou seu filme, parte aplaudiu, e houve os que abandonaram a sessão. O diretor diz que a atitude das platéias contemporâneas e seu gosto pelo chamado "ritmo rápido" é coerente com "a vitória da civilização do trabalho".
Para Bressane, "a errância e a sensibilidade são hoje condenadas", porque, estando "exaustas e saturadas", as pessoas não conseguem mais se dedicar a ver algo que exija delas algum esforço.
O documentário de Silvio Tendler sobre o cineasta Glauber Rocha (1939-1981) agradou e recebeu aplausos em cena aberta, durante os discursos em que Glauber pregava a quebra dos cânones cinematográficos, declarava-se irredutível a um modelo narrativo clássico e repudiava o compromisso com o sucesso comercial de filmes e cineastas.
Ex-mulher de Glauber, hoje casada com Sganzerla e atriz de "O Signo do Caos", Helena Ignez observou que a mesma platéia que se entusiasmou com a defesa (teórica) de Glauber em favor do cinema anticomercial foi a que rejeitou os filmes de Sganzerla e Bressane. "O público gosta da idéia, mas não sabe ver um cinema não-narrativo. Tenho pena do público", disse Ignez.
Entre os cinco concorrentes apresentados até domingo, o que mais conquistou a platéia foi "Garotas do ABC", de Reichenbach. A exibição de "Harmada" estava prevista para a noite de ontem, após o fechamento desta edição.
"Garotas do ABC" ambienta no universo operário da Grande São Paulo questões como exploração do trabalho, luta sindical, racismo e ideais libertários. Com uma linguagem menos fragmentada que a de "O Signo do Caos" e "Filme de Amor" e nem tão ágil quanto a de "Glauber o Filme, Labirinto do Brasil", "Garotas do ABC", segundo Reichenbach, contém a marca de seu cinema: "A dicotomia entre o erudito e o popular".
"Lost Zweig", de Sylvio Back, é uma reconstrução histórica das circunstâncias que levaram o escritor austríaco Stefan Zweig a cometer suicídio no Brasil, em 1942, aos 60 anos de idade, sendo acompanhado na decisão pela mulher, Lotte.
O filme de Back -que busca a elegância na narração de uma história trágica e desdenha da cronologia, antecipando o desfecho aos fatos que o determinaram- foi aplaudido com respeito durante sua exibição em Brasília.
Como são inegáveis pela crítica as qualidades dos filmes que a platéia rejeitou, a competição do 36ª Festival de Brasília chega ao fim sem um favorito evidente. O regulamento da mostra não veda a divisão de prêmios, inclusive para a categoria de melhor filme. A dúvida é, portanto, se o júri oficial conseguirá chegar a uma escolha ou diluirá sua decisão.
Veja os vencedores do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro em Folha Online
A jornalista Silvana Arantes e o crítico Inácio Araujo viajaram a convite da organização do festival


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