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BERNARDO CARVALHO
Cinema do presente
Por ocasião do lançamento
de "Alila" ("Complô" ou
"Ficção"), último filme de Amos
Gitai, em Paris, o Centro Georges
Pompidou organizou, em outubro, uma grande retrospectiva do
cineasta israelense. Gitai tem 53
anos e cerca de 50 filmes na bagagem, entre documentários e ficções, curtas e longas-metragens.
A mostra no Beaubourg contou
ainda com uma série de publicações paralelas, que incluem um
catálogo sobre a obra do pai, o arquiteto Munio Weinraub Gitai,
ex-aluno de Kandinsky e membro
da Bauhaus, que emigrou para a
Palestina em 1929, e uma longa
entrevista do cineasta com Serge
Toubiana, do "Cahiers du Cinéma".
Gitai considera o documentário
"Casa" (1980) seu primeiro filme
propriamente dito, embora já tivesse realizado outros curtas na
época. O filme narra a história de
uma casa num bairro rico de Jerusalém. Em 1948, com a guerra
pela criação do Estado de Israel,
muitas famílias palestinas deixaram suas casas e buscaram refúgio longe dos tiros. Logo depois da
guerra, Israel criou uma "lei da
ausência", determinando que,
uma vez abandonados (em alguns casos, na Galiléia, bastava
que os proprietários se ausentassem por três dias), esses terrenos e
casas passavam a ser propriedade
do Estado, que em seguida podia
dispor deles como bem entendesse, alugando-os ou emprestando-os a seus cidadãos - até 1977,
quando o governo Begin decidiu
vendê-los.
Gitai entrevistou o proprietário
da casa em 1980, um professor de
economia israelense, e o velho
médico palestino a quem ela pertencia quando foi desapropriada
em 1948, mas também os operários, todos árabes, que trabalhavam na reforma para o novo morador. A casa era o microcosmo
de um território, a metáfora de
uma situação social explosiva
num país onde construir é um ato
político com consequências muitas vezes terríveis. O filme foi censurado em Israel.
Em 1998, Gitai voltou a filmar a
mesma casa, agora dividida em
apartamentos e ocupada por outros israelenses ou imigrantes judeus de classe média alta. Entrevistou os novos proprietários,
além do filho e da neta do médico
palestino a quem pertencera a casa até 1948. Dessa vez, entretanto,
sobressaía o nome da rua (Dor
Dor ve Dorshav) como metáfora
das questões levantadas pelo filme.
"Dor Dor ve Dorshav" significa
"cada geração tem os seus mestres" ou "cada época interpreta a
Bíblia à sua maneira". O simbolismo da frase é surpreendente
num país que procura enterrar o
passado recente para se erguer como justificativa de um passado
remoto. Não é por acaso que não
há em Israel nenhuma tradição
cinematográfica. O cinema é uma
arte do presente.
Na contramão, Gitai acredita
que só será possível erguer um
país em que se possa viver em paz
no dia em que a memória recente
já não for negada, no momento
em que já não houver apego a
uma mitificação longínqua como
justificativa da pátria. Foi por isso que ele abandonou a arquitetura pelo cinema.
De "Casa" a "Alila", Gitai valoriza a tradição judaica como crítica (seguindo os exemplos de
Freud, Benjamin e Einstein, entre
tantos outros) e não como dogma:
"É preciso evitar absolutamente a
visão unilateral das coisas no
Oriente Médio. (...) A cada filme,
o quebra-cabeça fica mais complexo, pois tento mostrar ângulos
diferentes".
Seu alvo é a própria noção de
identidade. Sobre um de seus personagens, ele diz: "Como toda
uma parte da sociedade israelense que não escolheu nascer em Israel, ele procura a sua identidade.
O que significa a laicidade? Por
que devemos continuar a fazer o
serviço militar?"
A pergunta ecoa em "Alila", filme em que a imagem do país não
só contradiz os estereótipos veiculados pela mídia internacional,
mas parece se adequar melhor a
outros, exteriores, como o do cinema italiano e o de uma certa latinidade. Não é à toa que o filme tenha um aspecto de novela de televisão.
Vários personagens se cruzam
num prédio popular de Tel Aviv.
Querem ter cotidiano como em
qualquer outra parte do mundo e
se recusam a se submeter ao olhar
unilateral projetado sobre eles: a
delegada de polícia mais parece
um personagem de Fellini ou do
neo-realismo italiano; há operários chineses ilegais, que mal falam hebraico e são explorados por
um esquema de economia informal típico de um país subdesenvolvido; um menino foge de casa
para não ter que fazer o serviço
militar; uma empregada filipina
prefere ouvir música no rádio a
ter que escutar as notícias do último atentado suicida.
Gitai propõe abandonar o apego às identidades e passar a compreendê-las como "móveis" (uma
vez que foram criadas pela história, também podem ser recriadas
pelo presente), para que possam
se mesclar numa nova identidade
moderna: "É preciso buscar outra
coisa além da origem estrita de
cada entidade, israelense ou palestina. É uma experiência única,
que os meus filmes tentam tomar
como hipótese, a partir de extratos ou fragmentos biográficos."
Não se trata de enterrar o passado recente mas, ao contrário, de
reconhecê-lo e entender que Israel
não é nem será a terra mítica que
cada um imagina para si. Israel é
o presente de quem vive lá, e não
uma projeção fantasiosa de algum mito remoto.
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