UOL


São Paulo, terça-feira, 25 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BERNARDO CARVALHO

Cinema do presente

Por ocasião do lançamento de "Alila" ("Complô" ou "Ficção"), último filme de Amos Gitai, em Paris, o Centro Georges Pompidou organizou, em outubro, uma grande retrospectiva do cineasta israelense. Gitai tem 53 anos e cerca de 50 filmes na bagagem, entre documentários e ficções, curtas e longas-metragens.
A mostra no Beaubourg contou ainda com uma série de publicações paralelas, que incluem um catálogo sobre a obra do pai, o arquiteto Munio Weinraub Gitai, ex-aluno de Kandinsky e membro da Bauhaus, que emigrou para a Palestina em 1929, e uma longa entrevista do cineasta com Serge Toubiana, do "Cahiers du Cinéma".
Gitai considera o documentário "Casa" (1980) seu primeiro filme propriamente dito, embora já tivesse realizado outros curtas na época. O filme narra a história de uma casa num bairro rico de Jerusalém. Em 1948, com a guerra pela criação do Estado de Israel, muitas famílias palestinas deixaram suas casas e buscaram refúgio longe dos tiros. Logo depois da guerra, Israel criou uma "lei da ausência", determinando que, uma vez abandonados (em alguns casos, na Galiléia, bastava que os proprietários se ausentassem por três dias), esses terrenos e casas passavam a ser propriedade do Estado, que em seguida podia dispor deles como bem entendesse, alugando-os ou emprestando-os a seus cidadãos - até 1977, quando o governo Begin decidiu vendê-los.
Gitai entrevistou o proprietário da casa em 1980, um professor de economia israelense, e o velho médico palestino a quem ela pertencia quando foi desapropriada em 1948, mas também os operários, todos árabes, que trabalhavam na reforma para o novo morador. A casa era o microcosmo de um território, a metáfora de uma situação social explosiva num país onde construir é um ato político com consequências muitas vezes terríveis. O filme foi censurado em Israel.
Em 1998, Gitai voltou a filmar a mesma casa, agora dividida em apartamentos e ocupada por outros israelenses ou imigrantes judeus de classe média alta. Entrevistou os novos proprietários, além do filho e da neta do médico palestino a quem pertencera a casa até 1948. Dessa vez, entretanto, sobressaía o nome da rua (Dor Dor ve Dorshav) como metáfora das questões levantadas pelo filme.
"Dor Dor ve Dorshav" significa "cada geração tem os seus mestres" ou "cada época interpreta a Bíblia à sua maneira". O simbolismo da frase é surpreendente num país que procura enterrar o passado recente para se erguer como justificativa de um passado remoto. Não é por acaso que não há em Israel nenhuma tradição cinematográfica. O cinema é uma arte do presente.
Na contramão, Gitai acredita que só será possível erguer um país em que se possa viver em paz no dia em que a memória recente já não for negada, no momento em que já não houver apego a uma mitificação longínqua como justificativa da pátria. Foi por isso que ele abandonou a arquitetura pelo cinema.
De "Casa" a "Alila", Gitai valoriza a tradição judaica como crítica (seguindo os exemplos de Freud, Benjamin e Einstein, entre tantos outros) e não como dogma: "É preciso evitar absolutamente a visão unilateral das coisas no Oriente Médio. (...) A cada filme, o quebra-cabeça fica mais complexo, pois tento mostrar ângulos diferentes".
Seu alvo é a própria noção de identidade. Sobre um de seus personagens, ele diz: "Como toda uma parte da sociedade israelense que não escolheu nascer em Israel, ele procura a sua identidade. O que significa a laicidade? Por que devemos continuar a fazer o serviço militar?"
A pergunta ecoa em "Alila", filme em que a imagem do país não só contradiz os estereótipos veiculados pela mídia internacional, mas parece se adequar melhor a outros, exteriores, como o do cinema italiano e o de uma certa latinidade. Não é à toa que o filme tenha um aspecto de novela de televisão.
Vários personagens se cruzam num prédio popular de Tel Aviv. Querem ter cotidiano como em qualquer outra parte do mundo e se recusam a se submeter ao olhar unilateral projetado sobre eles: a delegada de polícia mais parece um personagem de Fellini ou do neo-realismo italiano; há operários chineses ilegais, que mal falam hebraico e são explorados por um esquema de economia informal típico de um país subdesenvolvido; um menino foge de casa para não ter que fazer o serviço militar; uma empregada filipina prefere ouvir música no rádio a ter que escutar as notícias do último atentado suicida.
Gitai propõe abandonar o apego às identidades e passar a compreendê-las como "móveis" (uma vez que foram criadas pela história, também podem ser recriadas pelo presente), para que possam se mesclar numa nova identidade moderna: "É preciso buscar outra coisa além da origem estrita de cada entidade, israelense ou palestina. É uma experiência única, que os meus filmes tentam tomar como hipótese, a partir de extratos ou fragmentos biográficos."
Não se trata de enterrar o passado recente mas, ao contrário, de reconhecê-lo e entender que Israel não é nem será a terra mítica que cada um imagina para si. Israel é o presente de quem vive lá, e não uma projeção fantasiosa de algum mito remoto.


Texto Anterior: Música: Especial registra DJs fora dos pick-ups
Próximo Texto: Guerra de notícias
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.