São Paulo, quarta, 25 de novembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVRO - LANÇAMENTO
Millôr comenta sua produção juvenil

ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local

Um homem de 74 anos -cético, arredio, mas consagrado- observa um rapaz de 25 -também cético, mas talentoso, promissor- e relata o que vê.
O resultado do encontro está no livro "Tempo e Contratempo", que a editora Beca, recém-fundada, acaba de lançar em São Paulo.
Moço e velho são, na verdade, a mesma pessoa: o humorista, dramaturgo, desenhista e tradutor carioca que recebeu dos pais o nome de Milton, já se escondeu sob o pseudônimo de Vão Gôgo e hoje se chama Millôr Fernandes.
"Por outro lado", como frisam os editores do livro, "talvez não se possa dizer que alguém seja a mesma pessoa depois de passados 49 anos". Também não se pode dizer literalmente que a Beca está lançando "Tempo e Contratempo". Trata-se, em parte, de uma reedição, porque o livro original -com título idêntico- nasceu há quase meio século.
Era uma coletânea de poemas, historietas, ensaios cômicos e desenhos que Vão Gôgo, 25, costumava publicar na seção Pif-Paf da revista "O Cruzeiro".
Agora, porém, há o olhar de Millôr Fernandes. O volume que está chegando às lojas traz tudo que o primeiro livro trazia. Mas acrescenta, à produção do artista quando jovem, observações do escritor setuagenário.
Às vezes, são ponderações negativas, que repudiam abertamente as "sacadas" de Vão Gôgo. "O desenho dos pássaros e do sol, (...) não gosto. Preferia mais acabado", afirma Millôr, sobre as ilustrações que compõem a capa de "Tempo e Contratempo".
Outras vezes, o criador experiente se comporta como um pai coruja, vaidoso com as façanhas do filho precoce. É assim, por exemplo, ao analisar textos de Vão Gôgo que imitam a linguagem das crianças (caso de "A Água": "A água de beber sai da bica mas nunca vi como ela entra lá. Também no chuveiro a água sai fininha mas não entendo como ela cai fininha quando chove pois o céu não tem furo".)
"Acho-os bem originais", escreve Millôr, "com excelente capacidade do autor entrar numa cabeça supostamente infantil-zen."
Adota o mesmo tom orgulhoso (embora salpicado de ironia) para explicar de onde tirou o pseudônimo juvenil. "Emmanuel Vão Gôgo se compunha de Immanuel, de Kant, altas filosofias, mais Vão, vaidoso, fútil, mais Gôgo, gosma das galinhas. No meio disso tudo, a homenagem, pela paronímia, de Vão Gôgo com Van Gogh. "Rico, no, mamita?'"
O ponto alto do livro, no entanto, são as recriações, os instantes em que o humorista reaproveita uma idéia da juventude.
Se Vão Gôgo produziu a célebre "Poesia Matemática", testemunhando o amor de "um Quociente" por "uma Incógnita", Millôr faz a "Poesia Geométrica", desta vez de inclinação gay: "Pontudo poliedro/ Ao entrar numa equação/ Encontrou um Rombóide exemplar/ De ângulos sem par/ E negra simetria linear/ "Eureka!', estremeceu./ "Newton, me ajuda de verdade,/ Que perco a gravidade!'".
Se Vão Gôgo contou a fábula de Chapeuzinho Vermelho como uma reportagem de "O Cruzeiro", Millôr narra a mesma história à maneira do romancista Guimarães Rosa: "No contravisto do caminho, Capuchinho Purpúreo ia à frente, a com légua de andada, no desmedo da Floresta. O bornoz estornava demasias de gula, carnalidades, guleimas, bebeiras e pitanças pra boca de pessoa, a vó, sem nem aviso antes".
Cético desde que, criança, perdeu a mãe ("percebi claramente que não havia Deus, não havia diálogo, e descobri, para sempre, a paz da descrença"), Vão Gôgo-Millôr também cultiva o desprezo pela psicanálise.
"Na era psicanalítica, não se sofre mais de coceira. Tem-se um tique", zombou aos 25.
"Sou um antifreudiano porreta e não acredito que se deva remexer nas profundas da alma", reiterou aos 74. "O homem (ser humano) é uma máquina de enrustir."
Curiosamente, há dois dias, protagonizou um episódio que Freud adoraria analisar. Depois de se comprometer a participar de três programas de TV e de marcar entrevistas com dois jornais (incluindo a Folha), desistiu de tudo, na última hora.
À sua assessoria, explicou assim a repentina mudança de rumo: "Não sei lidar com elogios. Não gosto que gostem de mim. Não gosto que falem de mim."
²

Livro: Tempo e Contratempo
Autores: Vão Gôgo e Millôr Fernandes
Lançamento: Beca
Quanto: R$ 86 (160 págs)




Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.