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GASTRONOMIA
A terceira missa
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Não ouço mais falar em Alphonse Daudet nem na história natalina dele de que mais
gostávamos, contada aqui em libérrima versão.
Era uma noite de Natal de mil
seiscentos e tanto, e conversavam
o capelão do senhor de Trinquelage e seu pequeno sacristão Garrigou, na capela onde aconteceriam
as três missas de Natal. (Era o que
parecia, mas o pequeno Garrigou
fora possuído pelo demônio para
fazer o padre cair em tentação.)
-Então, temos na ceia perus
gordos, Garrigou?
-Maravilhosos, senhor, ajudei
a recheá-los de trufas, a pele se estica inteira prestes a arrebentar,
aqueles peitos enormes escorrendo manteiga. O chão da cozinha
está que é só plumas e penas...
-É preciso que você me ajude a
me vestir para a missa, Garrigou,
mas vá contando, o que mais, o
que mais?
-Trutas, enguias, carpas deste
tamanho, as escamas brilhando.
Desde o meio-dia que não fazemos outra coisa que não eviscerar
os peixes e temperá-los.
-Garrigou, ponha o vinho e a
água para a missa.
-Ah, este vinho não tem a ver
com as garrafas cheias de líquidos
de todas as cores, dourados e rubros, e as luzes que fazem estrelinhas dentro deles, os candelabros
de velas acesas! Ah, vinho do papa...
-Pare, Garrigou, pecar por gula na noite de Natal, isso não é
bom! Vá pegar sua sineta e comecemos a primeira missa.
Baixinho o padre sussurrava:
"Trutas brilhantes com salsinha,
carpas recheadas, perus de pele
crocante".
Os camponeses chegavam vestidos nas suas roupas de festa, agasalhados, o coração quente por
saberem que depois das missas
um belo jantar os esperava na cozinha do castelo.
Começava a cerimônia. A sineta
tocava num som estridente de vamos -depressa, quanto-mais-depressa-melhor... E, a cada toque, a cabeça do padre se enchia
de mais um ingrediente inusitado, de mais um molho escuro, e as
castanhas tão doces, a salada de
legumes al dente, as belas massas.
Mas não se esquecia de nem uma
palavrinha ou genuflexão, coisa
por coisa do ritual tantas vezes repetido, só que num ritmo um
pouco mais veloz do que de costume. Tlim, tlim, tlim.
-Pronto, Garrigou, acabou-se
a primeira missa, vamos à segunda...
E só então começaram alguns
escorregões de dom Balaguère, o
nosso padre tentado por Garrigou. Ai, ai, ai, o faisão, as galinholas, as frutas em pirâmides vermelhas e amarelas. Já enrolava as palavras, fazia o sinal da cruz pela
metade, e a sineta tocava, tocava o
sininho do diabo.
A tentação era grande, imaginava a mesa cheia quase se dobrando de gostosuras, pulava a metade
do Evangelho e a sineta tocava e
gritava, está na mesa, está na mesa!
Padre Balaguère, afinal, vira-se
para os fiéis embasbacados e quase canta: "Ite missa est!".
Começou então a festa. O castelo feericamente iluminado, os risos, os cantos, e o venerável dom
Balaguère enfiou o garfo na sua
primeira codorninha, bebeu o
primeiro gole do vinho de rubi,
babou o suco das carnes sumarentas, empaturrou-se dos doces
mais amarelos... e morreu num
ataque súbito e terrível.
De manhã chegou aos céus, que
ainda ecoavam o barulho das festas do dia anterior, e foi recebido
pelo grande juiz, o mestre de todos, que não perdoou o pecado da
noite de Natal.
-Você só entrará no céu quando tiver celebrado 300 missas, três
por ano, seu pecado é muito grande, anula tudo de bom que já fez e
terá de pagá-lo.
É esta a historinha simples de
dom Balaguère, do país das oliveiras. O castelo de Trinquelage não
existe mais, mas a capela está lá,
no alto do monte Ventoux, toda
desconjuntada, as portas batendo
nos gonzos, as ervas daninhas tomando conta da nave. Dizem os
camponeses que, todos os anos,
no dia do Natal, uma luz sobrenatural paira sobre as ruínas.
E Garrigue, um rapaz novo ainda, com certeza descendente do
sacristão Garrigou conta baixinho
que no silêncio de uma noite de
Natal ele andava por lá e que o lugar de repente cobrou vida, ouviu-se uma sineta, velas se acenderam em meio aos pássaros da
noite e das corujas que batiam
asas, espaventadas. Figuras vestidas à antiga se ajoelhavam diante
do altar, um velhinho que era só
rugas batia a sineta muda e enferrujada e um padre também muito
encurvado, de vestes de velho ouro, andava de lá para cá recitando
orações ininteligíveis. Com certeza era dom Balaguère celebrando
sua terceira missa.
ninahort@uol.com.br
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