UOL


São Paulo, quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GASTRONOMIA

A terceira missa

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Não ouço mais falar em Alphonse Daudet nem na história natalina dele de que mais gostávamos, contada aqui em libérrima versão.
Era uma noite de Natal de mil seiscentos e tanto, e conversavam o capelão do senhor de Trinquelage e seu pequeno sacristão Garrigou, na capela onde aconteceriam as três missas de Natal. (Era o que parecia, mas o pequeno Garrigou fora possuído pelo demônio para fazer o padre cair em tentação.)
-Então, temos na ceia perus gordos, Garrigou?
-Maravilhosos, senhor, ajudei a recheá-los de trufas, a pele se estica inteira prestes a arrebentar, aqueles peitos enormes escorrendo manteiga. O chão da cozinha está que é só plumas e penas...
-É preciso que você me ajude a me vestir para a missa, Garrigou, mas vá contando, o que mais, o que mais?
-Trutas, enguias, carpas deste tamanho, as escamas brilhando. Desde o meio-dia que não fazemos outra coisa que não eviscerar os peixes e temperá-los.
-Garrigou, ponha o vinho e a água para a missa.
-Ah, este vinho não tem a ver com as garrafas cheias de líquidos de todas as cores, dourados e rubros, e as luzes que fazem estrelinhas dentro deles, os candelabros de velas acesas! Ah, vinho do papa...
-Pare, Garrigou, pecar por gula na noite de Natal, isso não é bom! Vá pegar sua sineta e comecemos a primeira missa.
Baixinho o padre sussurrava: "Trutas brilhantes com salsinha, carpas recheadas, perus de pele crocante".
Os camponeses chegavam vestidos nas suas roupas de festa, agasalhados, o coração quente por saberem que depois das missas um belo jantar os esperava na cozinha do castelo.
Começava a cerimônia. A sineta tocava num som estridente de vamos -depressa, quanto-mais-depressa-melhor... E, a cada toque, a cabeça do padre se enchia de mais um ingrediente inusitado, de mais um molho escuro, e as castanhas tão doces, a salada de legumes al dente, as belas massas. Mas não se esquecia de nem uma palavrinha ou genuflexão, coisa por coisa do ritual tantas vezes repetido, só que num ritmo um pouco mais veloz do que de costume. Tlim, tlim, tlim.
-Pronto, Garrigou, acabou-se a primeira missa, vamos à segunda...
E só então começaram alguns escorregões de dom Balaguère, o nosso padre tentado por Garrigou. Ai, ai, ai, o faisão, as galinholas, as frutas em pirâmides vermelhas e amarelas. Já enrolava as palavras, fazia o sinal da cruz pela metade, e a sineta tocava, tocava o sininho do diabo.
A tentação era grande, imaginava a mesa cheia quase se dobrando de gostosuras, pulava a metade do Evangelho e a sineta tocava e gritava, está na mesa, está na mesa!
Padre Balaguère, afinal, vira-se para os fiéis embasbacados e quase canta: "Ite missa est!".
Começou então a festa. O castelo feericamente iluminado, os risos, os cantos, e o venerável dom Balaguère enfiou o garfo na sua primeira codorninha, bebeu o primeiro gole do vinho de rubi, babou o suco das carnes sumarentas, empaturrou-se dos doces mais amarelos... e morreu num ataque súbito e terrível.
De manhã chegou aos céus, que ainda ecoavam o barulho das festas do dia anterior, e foi recebido pelo grande juiz, o mestre de todos, que não perdoou o pecado da noite de Natal.
-Você só entrará no céu quando tiver celebrado 300 missas, três por ano, seu pecado é muito grande, anula tudo de bom que já fez e terá de pagá-lo.
É esta a historinha simples de dom Balaguère, do país das oliveiras. O castelo de Trinquelage não existe mais, mas a capela está lá, no alto do monte Ventoux, toda desconjuntada, as portas batendo nos gonzos, as ervas daninhas tomando conta da nave. Dizem os camponeses que, todos os anos, no dia do Natal, uma luz sobrenatural paira sobre as ruínas.
E Garrigue, um rapaz novo ainda, com certeza descendente do sacristão Garrigou conta baixinho que no silêncio de uma noite de Natal ele andava por lá e que o lugar de repente cobrou vida, ouviu-se uma sineta, velas se acenderam em meio aos pássaros da noite e das corujas que batiam asas, espaventadas. Figuras vestidas à antiga se ajoelhavam diante do altar, um velhinho que era só rugas batia a sineta muda e enferrujada e um padre também muito encurvado, de vestes de velho ouro, andava de lá para cá recitando orações ininteligíveis. Com certeza era dom Balaguère celebrando sua terceira missa.

ninahort@uol.com.br


Texto Anterior: Panorâmica - Música: Morre na Áustria, aos 82, o saxofonista Hans Koller
Próximo Texto: Mundo gourmet: Gallery Oggi parece boate, mas pode ser bom restaurante
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.