São Paulo, segunda-feira, 25 de dezembro de 2006

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GUILHERME WISNIK

Fôrma e forma


A igreja cristã é um desdobramento da basílica romana e adota uma tipologia uterina


NUMA CULTURA em que as imagens têm papel estrutural, podemos dizer que a presença cultural do cristianismo foi mais decisiva do que a da iconoclastia judaica. Quero dizer que a segunda permaneceu de certa forma alheia ao problema da formalização, haja vista a neutralidade arquitetônica da maior parte das sinagogas, que mais parecem organizados tribunais do que lugares de culto.
Por outro lado, não é por acaso que a sua adoração atávica e descarnada de uma imensa parede de pedra (o arrimo do antigo templo de Salomão, em Jerusalém, chamado de Muro das Lamentações), pareça fornecer mais elementos para a arte contemporânea do que qualquer igreja cristã.
A questão da formalização é fundante para a nossa civilização, e se baseia no par classicismo-cristandade, que envolve uma aproximação vital entre homem e divindade (imbricados no panteão olímpico, no primeiro caso, e mediados pelo "deus menino", no segundo).
Espacialmente, a igreja cristã é um desdobramento da basílica romana, edifício público em forma de pavilhão usado para reuniões jurídicas, comerciais e de negócios. Congregação de fiéis visando um contato metafísico com o divino, a igreja adota uma tipologia introspectiva, uterina, invertendo o caráter extrovertido dos templos politeístas (pirâmides egípcias, zigurates mesopotâmicos, santuários gregos), volumes feitos para serem vistos de fora.
Como afirmação de domínio, ou pacto com uma sacralidade local, igrejas na Europa mediterrânea vieram a ser construídas por cima de antigos templos greco-romanos, mantendo sua implantação e dimensões originais, mas subvertendo a lógica espacial. Se o templo clássico é um volume vazado por colunas em toda a volta, em torno a uma cela lacrada no centro, interdito sacrificial que guarda a própria "moradas dos deuses", a igreja cristã fecha o seu perímetro para abrir o miolo.
Particularmente em Siracusa, na Sicília, lembro de ter visto com clareza a relação de positivo-negativo que se estabelece nesses casos.
Ali, o tijolo das paredes não chega a encapsular inteiramente as antigas colunas de pedra, que inclusive mantêm visíveis os capitéis dóricos como saliências nos planos das fachadas laterais. O que era peristilo, transição entre dentro e fora, vira limite, obstáculo. Por outro lado, a inescrutável cela central é violada, fazendo o homem aceder ao plano sagrado pela luz diáfana que vem do alto, no interior transparente da igreja. Se, no primeiro caso, o ritmo vertical da colunata de mármore alude a uma ordem humana geométrica exteriorizável, no segundo, a espiritualização envolve o homem em um ventre misterioso, monumentalizando a singela lapinha onde Jesus nasceu.
Podemos dizer que a subjetividade moderna se forma na tensão entre esses dois pólos, uma vez que a "urbanidade" clássica não se deixa apagar inteiramente pela vocação cristã de construir claustros. Uma sobrevive na outra, como molde e contra-molde de uma forma que persiste, embora esteja sempre se transformando.


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