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NELSON ASCHER
O melhor amigo do homem
A arrogância humana
não tem limites. Que séculos
atrás se tomasse a Terra como
centro do universo, talvez fosse
um equívoco derivado de um
ponto-de-vista distorcido. Afinal,
levou tempo para que a física moderna se desenvolvesse. Mas que
ainda hoje os membros de uma
espécie tão defeituosa moralmente quanto em termos de "design"
se considerem o topo, o cimo, o
ápice da criação é algo que decorre claramente da cegueira auto-induzida.
Um animal como a gente, que
passa seus três primeiros anos de
vida feito um feto extra-uterino,
que demora para se equilibrar sobre as patas traseiras e, até o fim,
tropeçando, sofrendo dores de coluna, jamais se acostuma a tal
postura, um bicho que, inadaptado ao grosso dos climas, se especializou em roubar peles alheias e
suou milênios como um porco
(que, aliás, não sua) antes de
comprar um ar-condicionado,
um mamífero cujas fêmeas, ao
contrário do que sucede com as
demais, não tem nem ao menos
um período determinado e ostensivo de cio e chegam a morrer de
parto deve ser qualificado de paradigma da perfeição?
OK: somos os detentores da patente da linguagem, digamos, articulada. Temos um cérebro grande (embora não proporcionalmente maior que o dos predadores em geral) e o utilizamos até
para criar coisinhas úteis. Ocorre
que quase todas as nossas invenções não passam de próteses destinadas a mal e mal compensar
desvantagens de nascença. E
ciência alguma nos desculpa ignorarmos tamanhas limitações:
elas saltam aos olhos quando nos
comparamos com nossos melhores amigos.
Essa honra (mais para nós que
para eles) pertence, há 1/4 de século, não ao cachorro, mas ao gato.
Foi no começo dos anos 80, nos
EUA, que sua popularidade superou a de seus clássicos rivais. Estima-se que atualmente os americanos possuam quase 70 milhões
de gatos enquanto a população
canina anda ao redor de 62 milhões. Mudanças aceleradas no
estilo de vida explicam o pendor
crescente pelos gatos que são autolimpantes, discretos e ficam sozinhos o dia inteiro sem incomodar os vizinhos. O empecilho que
os tornava inadequados à vida
caseira, ou seja, o cheiro agressivo
de sua urina, encontrou uma solução em 1947 quando o norte-americano Ed Lowe (1920-95)
descobriu que um tipo de argila
absorvia os dejetos líquidos dissipando-lhes o fedor. Desnecessário
dizer que o inventor dos granulados sanitários morreu milionário.
Se existe uma criatura cuja perfeição escancara comparativamente a ilimitada defeituosidade
humana, é, portanto, o gato. Dispondo de uma visão noturna seis
vezes superior à humana, de uma
audição vinte vezes mais potente,
de vibrissas (os bigodes) cheias de
sensores, ele sobrevive a quedas
que seriam letais para outros seres e administra o próprio sono,
distribuindo-o dia afora como lhe
convém . E isso vale para toda a
linhagem, dos gatos domésticos
aos tigres, das jaguatiricas às onças, do guepardo (ou chita), capaz de atingir 100 km/h, à pantera negra, pois, descontando as dimensões variáveis e os hábitos
adaptados aos respectivos habitats, as principais diferenças de
fundo entre os felinos são duas: os
pequenos comem sentados ou
acocorados e ronronam, mas não
rugem; os grandes comem deitados e rugem mas não ronronam.
Com exceção do gato propriamente dito, nenhum de seus parentes foi domesticado. Embora
alguns cheguem a ser individualmente domados, ninguém com
um mínimo de instinto de sobrevivência vê na tranquilidade de
um tigre ou leão de circo mais que
um armistício temporário que
pode ser unilateralmente rompido a qualquer momento. Agora,
que tenhamos domesticado um
de seus representantes não desmerece, de certo modo, todo o
grupo?
Não necessariamente, uma vez
que não se estabeleceu quem é
que de fato domesticou quem.
Apesar de os esqueletos mais antigos de cachorros convivendo com
humanos datarem de uns 15 mil
anos atrás, alguns pesquisadores
supõem que principiamos a modificar geneticamente o lobo selvagem 80 mil anos antes. Se, como carnívoro, o cachorro é nosso
competidor, sua utilidade numa
sociedade tribal de caçadores parece óbvia. As primeiras referências seguras aos gatos são, no entanto, bem mais recentes, têm
quatro ou cinco mil anos e provêm do Egito, nação que lhes conferiu o estatuto de animais sagrados, associando-os à deusa Bastet
(ou Bast, ou Pasht), filha de Ísis e
Osíris.
Nada indica que os tenhamos
realmente alterado. Nosso convívio com eles coincide com a adoção do sedentarismo e o surgimento da agricultura que inaugura o neolítico. Agricultura quer
dizer acúmulo de grãos. Grãos
atraem roedores. E logo chegam
os gatos. Não sei se alguém fez as
contas, mas sem estes, quem sabe
os roedores teriam ganho a competição contra o homo sapiens sapiens. Quando, durante a Idade
Média, os felinos europeus foram
demonizados e perseguidos, ratos
asiáticos portadores da peste bubônica invadiram o continente e,
graças a eles, 1/3 da população local pereceu. Por tênue e dificilmente demonstrável que seja, a
correlação não é absurda. Seja como for, o gato associou-se voluntariamente aos homens que se
adaptaram tanto a ele quanto ele
a nós.
Assim, a única coisa melhor do
que ser um gato é ser um gato anglo-saxão, porque se o resto do
planeta lhe atribui sete vidas, em
inglês ele tem proverbialmente
nove. E se sua perfeição e utilidade estão demonstradas, não temos como deduzir qual terá sido
o desígnio divino que lhe deu origem. Uma interpretação, tão
acertada que mereceria ser de
Jorge Luis Borges, resume-se na
seguinte frase: "Deus criou o gato
para que o homem pudesse afagar o tigre".
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