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FERREIRA GULLAR
Caos urbano
As montanhas que cercam a
cidade ora estão cinzentas,
ora de cor negra, ora lilás. A luz
dança por entre elas, atravessa
bairros, relampeja no verde da
floresta da Tijuca e roça as costas
na areia batida por águas azuis.
Na praia Vermelha, nesta manhã, as vagas vão e vêm cobertas
de dejetos: garrafas vazias de
plástico, restos de papelão, cascas
de frutas que bóiam ou se depositam na areia. Um banhista oculta-se atrás de uma barraca e urina. Um menininho se solta da
mãe e corre trôpego atrás da bola.
Na rua Duvivier, na esquina
com a Ministro Viveiros de Castro, arma-se na calçada uma loja
de móveis usados, a céu aberto:
estrado de cama, fogão velho, estante, duas cadeiras, uma poltrona puída, um sofá. Recostado nele, um homem barrigudo, nu da
cintura para cima, cochila; sentado numa das cadeiras, um rapaz
fuma e coça os dedos do pé. Um
ônibus de turismo estaciona do
outro lado da rua em frente ao
hotel. Uma caminhonete de frete
ocupa a passagem de pedestres.
Ali perto, dois guardas da Vigilância Municipal conversam
alheios ao que se passa à sua volta. Na banca de jornais, um cartaz escrito a mão: "Por favor, não
faça xixi na banca".
Na avenida Nossa Senhora de
Copacabana, o atropelo de ônibus e automóveis, vans e caminhões, que disputam freneticamente cada palmo da rua. A poluição sonora alcança níveis insuportáveis quando uma ambulância liga no máximo sua sirene ensurdecedora. Ondas negras de fumaça emanam dos motores que
queimam óleo diesel e rugem. Os
transeuntes respiram o ar pesado
da avenida que lhes queima os
pulmões. Um ciclista que desliza
em alta velocidade numa das calçadas entupidas de gente choca-se contra uma senhora numa cadeira de rodas e cai sobre a banca
de um camelô que vende CD pirata. Um cego, sentado à porta de
um edifício, estende a mão aos
que passam, fingindo não vê-lo.
Um grupo que segue em direção
à praia joga no chão copos de
plástico e papel de picolé, enquanto, da janela de um carro,
alguém se livra de uma bola de
papel amassada. "A rua não é lixeira", grita uma senhora. Ao dobrar a esquina da Djalma Ulrich,
vê-se numa janela um jarro com
miosótis.
Mendigos instalados numa rua
do Rio Comprido enrolam os colchões sujos em que dormiram e os
escondem junto a um depósito de
lixo. Um deles, com mãos negras
de ceroto, tira de um saco um pedaço de pão e começa a mastigá-lo; outro atravessa a rua e entra
num boteco em busca de um trago. Pouco adiante, pivetes, sentados na escada de um edifício, fumam maconha e riem. Uma senhora, que leva um menino pela
mão, muda de calçada, com medo. Na esquina próxima, vê-se estacionado um carro de polícia,
com uma porta aberta; um policial, recostado nele, observa as
pessoas com indiferença, mas é
despertado por disparos vindos de
um beco no fim da rua. Em Ipanema, um ladrão, ao roubar o rádio de um carro, morre fulminado por um enfarte. Bandidos assaltam 33 turistas ingleses num
ônibus de turismo ao entrar no
aterro do Flamengo. Mesmo assim, Cláudia consegue voar entre
os móveis de seu quarto, na rua
senador Eusébio.
A noite, como um fumo negro,
subiu do asfalto e foi tomando a
cidade inteira. Os carros acenderam os faróis e, ali no Centro, os
edifícios têm os seus pavimentos
iluminados. Pouco a pouco, a escuridão tinge todos os objetos, todas as pessoas. No Centro Cultural do Banco do Brasil, o cinema
está lotado. As salas de exposição
já se fecharam, mas, no térreo, alguma pessoas ainda conversam
junto ao balcão onde se servem
café e refrigerantes.
As primeiras horas da noite são
de tensão e ansiedade. Mas, com o
passar das horas, o tráfego intenso
que ocupara as grandes avenidas
foi diminuindo até fluir normalmente. As garagens dos edifícios
residenciais se enchem de veículos, as mães, os pais de família estão agora em suas casas e, depois
do jantar, em diferentes bairros,
acompanham na televisão as histórias implausíveis das novelas de
TV. Os jovens, os homens solitários, as mulheres inquietas enchem os bares espalhados por toda a noite carioca e se embebedam. Um adolescente drogado,
na Ilha do Governador, com uma
faca de cozinha, degolou a avó
que se negara a lhe dar mais dinheiro para comprar cocaína e
agora está deitado em seu quarto,
que estremece ao som de um rock
pesado.
Amanhece. A luz do sol desfaz a
neblina que o frio da madrugada
acumulara sobre os tetos A cidade
começa a despertar, as primeiras
pessoas caminham para a estações de trem e pontos de ônibus;
uns vão para o trabalho, outros à
procura de emprego. Na porta dos
hospitais longas filas de enfermos
que esperam atendimento desde a
noite anterior.
Um avião cruza o céu do Rio de
Janeiro, a caminho da Europa. Dá
para ver lá embaixo a cidade aparentemente tranqüila entre as
águas e as montanhas. Nem buzinas, nem disparos, nem queixas,
nem risos, nem soluços, nada disso se pode ouvir voando sobre ela
a 800 km por hora.
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