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RODAPÉ
Mérot e as virtudes da corrosão
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
"T oda família clássica sente-se na obrigação de ter
um fracassado: uma família sem
fracassado não é uma família de
verdade porque lhe falta um princípio que a conteste e lhe dê legitimidade". A abertura do livro
"Mamíferos", de Pierre Mérot,
professor parisiense na casa dos
40, ex-editor, ex-jornalista, condensa, num misto de boa insolência literária e etologia aforismática, o espírito da sua narrativa: literatura urbana, de um intelectualismo ácido, uma sexualidade
franca e sem adornos, uma escrita
avessa à impostura dos grandes
temas e à impostação das grandes
frases.
O fracassado em questão é o
"tio", protagonista anônimo, ironicamente designado a partir da
instituição que abomina, a família, que, acumulando "tropeços
gratificantes" (sem filhos, sem
empregos, sem parceira monogâmica, sem prestígio ou títulos),
conquistou o primeiro plano desta biografia do "Homem Sem
Qualidades" moderno, chapinhando na sua lama cotidiana,
aqui, convenientemente ordenada nas três partes que compõem o
volume, "Gastrite Erosiva", "Pedido de Falência" e "Roupa Suja".
Elas prestam conta minuciosa do
entra e sai incessante dos bares
-território que o tio, alcoólatra
convicto, domina, demarca e defende com todo engajamento, mínimo, de que é capaz-, das duas
"tentativas de suicídio afetivo",
ou seja, os casamentos desfeitos, e
dos ensaios, frustrados, de uma
vida profissional ordinária.
O estilo de Mérot, corrosivo e
raso, arma uma verdadeira razia
da rotina contemporânea. Pouco
concessivo, desencantado, o tio é
acompanhado de fora e de perto
pelo narrador, que o desenha
atraente em sua recusa do jogo social. De fracasso em fracasso -o
desfile é longo, e a demolição, certeira-, ele desempenha a vocação, que é também a do autor, de
anatomista. Revolve as entranhas
do mundo operoso e diligente e o
mau cheiro não se faz de rogado.
Do serviço civil obrigatório no
Museu da Marinha, pretexto para
dissecar o espírito público que
move a burocracia, às passagens
pelo mundo empresarial (editoras marginais e o mundo quase
tecnológico do minitel, finado ancestral gaulês da internet), culminando numa experiência como
professor (observador participante de uma farsa pedagógica
numa escola de periferia), Pierre
Mérot expõe, com a contundência seca, incisiva e sarcástica da
caricatura, as razões pelas quais o
trabalho, há muito, deixou de dignificar.
Premiado com o de Flore, "Mamíferos" evocou uma série de
modelos literários ao aparecer,
em 2003. As referências mais freqüentes foram a Louis-Ferdinand
Céline (1894-1961), pela misantropia e o bisturi incisivo, a Charles
Bukowski (1920-1994), pelo veneno destilado em mares de álcool,
mas, principalmente, ao escritor
francês Michel Houellebecq
(1958), pelo sexo e pelas poucas
concessões ao politicamente correto. De fato, há no livro uma impaciência francesa, rabugice, e um
humor cortante que, mesmo de
vocação satírica, não abre claros
num céu cinzento. A disposição
de não compactuar, descartando
quase tudo -trabalho, família,
arte, pedagogia, psicanálise, casamento, amor-, num mesmo esgoto, lembra o autor de "Plataforma" (2001) e "As Partículas Elementares" (1998), dos quais há
traduções brasileiras. Como
Houellebecq, Pierre Mérot provoca e polariza, sem tampouco propor qualquer revolução formal
evidente. A contundência é a da
simplificação e da repulsa às
meias palavras, da opção por uma
escrita chã, quase relatório, que
apenas muito excepcionalmente
se permite alçadas líricas, brotando das circunstâncias menos esperadas.
O paradoxal é o interesse que
este "angry young man" não mais
tão jovem desperta, atraindo por
vias tortas o que restou de simpatia e identificação possível em
seus companheiros de espécie e
falência. Difícil saber ao certo se o
que prevalece é o elemento de individualismo exacerbado que seu
gosto pela marginalidade oferece
(um certo não-me-amolismo que
se refugia nas ilusões desfeitas) ou
o compartilhamento de seu diagnóstico, preciso e pouco consolador. O conjunto vale a visita.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Mamíferos
Autor: Pierre Mérot
Tradução: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 34 (176 págs.)
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