São Paulo, quinta-feira, 26 de março de 2009

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NINA HORTA

Partidas


Um dia, tive uma conversa comprida com Clodovil sobre a origem do cuscuz


CLODOVIL HERNANDEZ não era o que se podia chamar de um doce de coco. Mas quem gostava dele gostava mesmo.
Nunca cheguei a ser amiga, mas, quando escrevi o "Não É Sopa", há uns dez anos, ele telefonou para a editora, pediu meu telefone e bateu um grande papo, comentou da cozinha dele, que era do tipo "três porquinhos", muita madeira, nada asséptica, mais para a hospitalidade do que para o moderno laboratório hospitalar. Nunca me tornei amiga dele por inadequação. Tinha muita admiração por ele, mas o medo ganhava.
Medo daquela língua ferina, daquela crítica a tudo em mim que eu achava que ele criticaria. E, se me criticasse, eu rodaria a baiana. Não fui capaz de enfrentar a insuportável franqueza dele. Mas, apesar de tudo, ele me telefonava e convidava para programas em que eu pudesse palpitar sobre culinária. E quem palpitava mais era ele. Sabia cozinhar bem. Sabia comer.
Um dia, levei vários cuscuzes, e tivemos uma conversa comprida sobre a origem da comida, como surgiram aquela sardinha em lata e as ervilhas. Fiz um cuscuz de farnel, num enorme guardanapo de linho, que pertencia a uma toalha de sete metros, de restaurante, adamascada e que sumira misteriosamente. Pois ele foi para a frente da câmera e, com o indicador em riste, enfrentando todas as empregadas de mau-caráter do mundo, mostrava o guardanapo e dizia: "O que vocês querem com uma toalha destas? Não têm nem onde guardar. É de ruindade, para fazer a patroa ficar triste e com raiva.
Quem roubou essa toalha trate de entregar. Os guardanapos estão aqui, lindos de morrer, e quem é que tem uma mesa de sete metros, meninas?". Por essas e por outras é que tinha medo dele. Num estúdio de programas de mulheres (cada uma com sua banquinha), falavam de flores, de limpeza, de comida, de costura, ou faça você mesmo, e ele só gemia. "Meu Deus, depois falam de mim. Mas já viu gente tão burra? Não entendem nada de nada." E o pior era que era verdade da pura. Sabia mais de plantas, de cozinha, de arrumação, de moda, de mesa, do que todas elas. De longe! Ficava tão irritado que já dava para perceber a próxima malcriação e ida para outros pagos.
Tinha fixação pela mãe. Mandava celebrar missas anuais pela morte dela e tinha um carinho imenso. A única coisa que lhe trazia paz de verdade era pensar em vê-la de novo, coisa em que acreditava e que até esperava com certa impaciência. Fico triste de ter perdido um amigo, um estilista dos bons, um cozinheiro amoroso, uma linguinha de cobra, que falava antes que o juízo desse ordem. Um bom amigo perfeccionista que não tive coragem de experimentar a fundo.
E as pessoas estão morrendo muito, coisa desagradável. Não sei quem dos leitores conheceu o Ângelo Salton. Era o tipo do homem imorrível, repleto de vida, simpatia imediata, generoso ao extremo, diria até inocente na sua modéstia e entrosamento com todo mundo. Qualquer festa em São Paulo era correr para o champanhe do Salton, que ele dava desconto, presente, fazia qualquer negócio para que seus espumantes aparecessem e fossem bebidos em ambiente de festa e cordialidade. Faço ideia de como a Fátima, mulher dele, fiel escudeira, deve estar se sentindo oca, vazia. Morava ao pé de um tsunami e, de repente, o lago manso. Não, mulher, você tem é que continuar a caminhada, se meter no meio daquelas uvas, mulher é para isso, para ser forte, para levar a vida para frente. Imagine se o Ângelo vê você de crista caída, não, não pode.
Todo mundo vai ajudá-la, como vocês ajudaram a todos, e toca o barco para a frente, que estamos escutando a gargalhada dele logo ali. Vamos, vamos brindar um exemplo de força de vontade e força de viver. Salton.

ninahorta@uol.com.br


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