São Paulo, quinta, 26 de março de 1998

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Latão desfia a saga de Joana D'Arc

ERIKA SALLUM
enviada especial a Curitiba

Chicago, anos 30. A indústria de carne enlatada atravessa enorme crise e os trabalhadores passam fome. A favor deles, surge a religiosa Joana D'Arc. Do lado dos bois, mortos em nome do capitalismo selvagem, está o magnata Pedro Paulo Bocarra, o rei dos frigoríficos.
Amanhã, às 21h30, o 7º Festival de Teatro de Curitiba recebe a peça "A Santa Joana dos Matadouros", escrita por um dos mais importantes dramaturgos do planeta, o alemão Bertolt Brecht (1898-1956).
Produzido entre 1929 e 1931, o texto ganhou montagem da paulistana Companhia do Latão (de "Ensaio para Danton") e direção de Sérgio de Carvalho e Márcio Marciano.
O espetáculo desfia a trajetória de Joana, integrante do exército dos Boinas Pretas, entidade que ajuda o faminto proletariado.
Ela acaba se tornando uma espécie de ponte entre os empregados e os patrões.
Na outra ponta da história, aparece Bocarra, dono de matadouros que pretende largar os negócios, pois afirma sentir pena dos vitelos, futuras latas de carne.
"Lembra-te, ó Cridle, aquele vitelo/ Que virava o olho claro, grande e obtuso para o céu/ Enquanto entrava na faca? Senti como se fosse carne/ Da minha carne", diz ele, logo no início da trama.
Apesar da poeticidade, Brecht criou uma obra cruel, em que mostra as "descidas de Joana às profundezas" -como são intituladas certas cenas-, até chegar a sua plena destruição.

Ensinamento
"A peça tem uma pedagogia clara: uma alma boa como a da Joana, se continuar sendo conciliadora, vai cair até o fim. Por isso, ela gera um incômodo no público, que fica com um nó na garganta, e isso é muito legal", define Carvalho, 31.
Outro tema importantíssimo nesse trabalho de Brecht é a luta de classes: "Pode parecer antigo, datado, mas é um assunto que nos interessa e que não está superado de jeito nenhum. E que raras vezes foi discutido no teatro."
Editado pela Paz e Terra, o texto tem tradução, no Brasil, de Roberto Schwarz, que foi chamado pelo grupo para fazer leituras da obra.
"A primeira leitura foi tão bem que resolvemos fazer outras. Após convite do Sesc para participar de um evento em comemoração do centenário de nascimento do Brecht, decidimos montar "Santa Joana'."
O espetáculo fez pré-estréias no início do mês, no interior de São Paulo, o que já deu aos diretores a oportunidade de ver como a platéia reage às artimanhas de Bocarra e à bondade de Joana.
"Os espectadores riem do Bocarra, mas, lá pelas tantas, eles percebem que esse riso é um pouco indecente, pois nasce das canalhices desse personagem."
Oito atores se revezarão nos vários papéis da peça. No palco, objetos pendurados em ganchos, como carnes nos frigoríficos, dois bancos e duas escadas. Tudo muito simples, poucos adereços.
"Se há uma nevasca, estendemos um lençol branco. A peça é muito narrada, a imaginação do público preenche os buracos, não damos nada mastigado a ele", explica Marciano, 35.
"A Santa Joana dos Matadouros" faz parte de um projeto da Companhia do Latão batizado de "Pesquisa em Teatro Dialético". Além do espetáculo e de leituras dramáticas, inclui também a revista trimestral "Vintém".
"A gente pesquisa assuntos contemporâneos. Nós nos propusemos estudar Brecht não de uma forma teórica, mas lendo trabalhos dele e partindo para a sala de ensaio", afirma Carvalho.



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